
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte III – A finança ao serviço da sociedade e não a sociedade ao serviço da finança.
5. Representação do interesse público no sistema bancário (6ª parte)
Por Finance Watch com o apoio da Fundação Hans-Böckler, dezembro de 2016
Autores: Duncan Lindo e Aline Fares
Editores: Greg Ford e Christophe Njdam
(6ª parte)
4. Os bancos (continuação)
(…)
Governança: bancos de acionistas e bancos de partes interessadas
Os mecanismos de governança formal dos bancos é um outro canal pelo qual o público pode potencialmente representar os seus interesses. Aqui distinguimos entre bancos de acionistas e bancos de partes interessadas e examinamos as possibilidades de cada um destes dois grupos.
Bancos de acionistas
São considerados bancos de acionistas aqueles a quem a gestão formalmente responde perante os acionistas, como proprietários da empresa, por exemplo, através de votos em assembleias gerais, e o dever oficial da administração é o de maximizar os retornos de capital aos acionistas. Estes bancos tendem a ser cada vez maiores e mais envolvidos em atividades de negociação-especulação (que envolvem esmagadoramente a negociação com outras empresas financeiras) e são mais internacionais do que os bancos de partes interessadas. Os bancos de acionistas também predominam entre os bancos que faliram na crise de 2007-9 e foram nacionalizados.
Os maiores bancos e os que são classificados como ‘bancos de investimento’ são quase todos eles bancos de acionistas [53].
Os bancos de acionistas excluem explicitamente outras partes interessadas
Mais obviamente, os bancos de acionistas excluem explicitamente a participação de outras partes interessadas na governança formal do banco. A administração tem poucos deveres em relação a outras partes interessadas, para além dos que são impostas por lei e pela regulação/regulamentação, por exemplo, leis de emprego, leis sobre fraude, etc. Embora os lucros possam ser obtidos através da oferta de um bom serviço aos clientes ou tratando bem os funcionários, pode claramente haver conflito entre o objetivo de maximizar o valor para o acionista e a representação dos interesses de outras partes interessadas. A tendência recente para a digitalização e consequente encerramento de agências oferece uma ilustração relevante: os altos quadros da administração dos bancos consideram que uma mudança no banco para a Internet e uma redução da atividade bancária baseada em agências pode reduzir os custos e aumentar os lucros. Contudo, os encerramentos de agências concentram-se geralmente nas áreas rurais e nas áreas mais pobres, onde o uso e o acesso à internet também são mais baixos [54]. Os funcionários e clientes afetados negativamente têm pouca ou nenhuma possibilidade de participar e representar os seus próprios interesses nessas decisões.
Como a alta administração domina os acionistas
Mas até mesmo os acionistas têm de lutar para serem ouvidos
No entanto, a teoria e a evidência mostram que os acionistas também são muitas vezes impedidos de participar e representar os seus interesses para influenciar as atividades bancárias. Os economistas, por exemplo, observaram há muito os principais problemas de representação que os acionistas têm no controle da gestão, incluindo um problema de ação coletiva devido à fragmentação dos acionistas [55].
Numerosos dispositivos são teorizados para alinhar economicamente os incentivos de gestão com os interesses dos acionistas, ou seja, a remuneração relacionada com o desempenho, a gestão da estrutura acionista (muitas vezes com períodos de bloqueio) e cláusulas para recuperar o pagamento depois de se ter passado um período de grandes perdas. Contudo, os efeitos destes mecanismos são silenciados por altos salários (que muitas vezes aumentaram após a crise, compensando a queda dos bónus), de modo que os altos quadros da administração estão perante um perfil de recompensa que os compensa extraordinariamente bem nos bons tempos, mas ainda se mantém muito confortável nos maus momentos. O incentivo económico resultante é ainda para assumir altos níveis de risco com o “dinheiro das outras pessoas” (Other People’s Money-OPM).
O público é acionista dos bancos via políticas de pensões e seguros privados
Além disso, este foco em incentivos económicos ignora a falta de oportunidades de participação e da representação direta de interesses pelos acionistas. Mais uma vez isso é exacerbado pela estrutura atual de bancos e da finança na Europa. Os acionistas podem votar em assembleias gerais de acionistas, mas, primeiro, a administração controla a agenda de tais reuniões e, assim, pode restringir as opções disponíveis. Em segundo lugar, à medida que a Europa se tornou mais financeirizada, o público em geral é geralmente acionista de bancos através de gestores de fundos que agrupam os investimentos de muitos detentores de fundos de pensões e de seguros.
Estes agrupamentos de investimentos permitem que os gestores de fundos separem em grande parte a sua gestão da responsabilidades da sua gestão de ativos (ou seja, prémios e pagamentos de um lado, compra e venda de instrumentos financeiros, por outro). Libertos das exigências de liquidez, os gestores de ativos podem concentrar-se nas negociações sobre títulos para capturar as variações de preços (comprar a baixo preço, vender a alto preço) [56]. Dados os incentivos ao desempenho com que se deparam, e nesta era de negociação de alta velocidade, muito poucos gestores de ativos podem exercer os seus direitos de governança nos bancos, preferindo “votar com os pés” vendendo ações cujo preço eles pensam que vai cair.
Embora os bancos geralmente tenham regressado a uma rentabilidade relativa desde a crise, uma vez que a crise é tida em conta, é claro que os acionistas dos bancos da Europa não terão tido uma boa caminhada nos últimos anos. A figura 6 abaixo mostra o índice Stoxx Bank 600 dos preços das ações bancárias, o índice está em aproximadamente um quarto do seu valor de pico em março de 2007. Os resgates bancários privatizaram ganhos e socializaram perdas através do Estado, mas a maioria dos acionistas (muitas vezes o público em geral através de pensões e seguros) também pagaram um alto preço pela crise bancária em comparação com o que foi pago pelos altos quadros da administração.
Em suma, o funcionamento atual dos bancos de acionistas na Europa impede, na maior parte, a participação significativa e a representação dos interesses pelos seus próprios acionistas e os mecanimos de governação formal excluem explicitamente a participação e representação de interesses de outros grupos de partes interessadas.
Bancos de partes interessadas
Bancos de partes interessadas visam objetivos mais amplos
Uma minoria significativa dos bancos da Europa não são bancos de acionistas, mas podem ser rotulados como bancos de partes interessadas. Os bancos de partes interessadas visam explicitamente proporcionar uma gama de benefícios mais vastos às partes interessadas, ao mesmo tempo que obtêm lucros suficientes para garantir a sustentabilidade e a segurança financeira [57]. Estes incluem bancos sob a forma de cooperativas, bancos mútuos, caixas económicas e bancos públicos [58], bem como Uniões de Credito, instituições de financiamento do desenvolvimento comunitário e Caixas Públicas de Poupança [59]. Na Europa, os bancos de partes interessadas têm maior propabilidade de serem pequenos e médios bancos, tornando-os muito pouco suscetíveis de poderem constituir uma ameaça sistémica. Eles tendem a assumir uma prática de banca tradicional (“boring banking”): concessão de empréstimos a famílias e empresas não-financeiras nas suas economias locais, em vez de negociar com outros bancos e empresas financeiras. Eles também são globalmente menos alavancados e conseguiram manter um bom crescimento do crédito em toda a crise (com grande investimento bancário aplicado na economia “real”) [60].
Dado o seu apoio explícito a outras partes interessadas, os bancos de partes interessadas oferecem mais possibilidades de melhorar a participação pública e a representação de interesses; no entanto a experiência mostra que também requerem medidas de governança cuidadosas e restrições sobre as suas atividades, a fim de serem bem-sucedidos. Os mecanismos de governação devem equilibrar cuidadosamente as vozes dos intervenientes, evitando uma influência excessiva para uma ou outra minoria de interesses e/ou espécie de submissão face à participação de uma qualquer parte interessada.
Talvez o tipo mais conhecido de bancos de partes interessadas sejam os bancos cooperativos e estruturas similares que dão voz aos titulares de contas, por exemplo, concedendo a cada depositante uma participação na votação. Os problemas em tais bancos geralmente resultam de pressão para crescerem pressão que se pode expressar de várias maneiras. O crescimento tende a exigir obtenção de capital, o que é difícil para muitos bancos de partes interessadas e especialmente para aqueles como cooperativas, bancos mutualistas ou estruturas similares. No Reino Unido, isso levou a maioria destes bancos a desmutualizarem-se e a transformarem-se em bancos de acionistas. Isso também pode levar a pressões para mudar os seus modelos de negócios ou para se envolverem em novas atividades. Famoso, é o caso do Northern Rock que faliu depois de tentar expandir-se, mudando-se para um modelo de negócios onde os ativos hipotecários em rápido crescimento foram transferidos para titularizações e o financiamento passou de financiamento pelos depósitos para o financiamento do mercado. Às Caixas espanholas foram-lhes removidas as restrições às suas atividades ao longo dos anos 70 e 80, “com o objetivo de lhes permitir competir plenamente com os bancos comerciais” [61], com resultados catastróficos, como se viu na crise em Espanha.
“A representação democrática será certamente insuficiente enquanto o objetivo primordial dos bancos for o lucro” – participante em workshops
Os bancos públicos também continuam a ser, de várias formas, uma parte importante do setor bancário da Europa, tipicamente trazendo representantes eleitos democraticamente para o processo de tomada de decisões do banco. As acusações da falta de responsabilidade ou mesmo de corrupção nos bancos públicos parecem estar deslocadas (ou seja, estão a culpar os bancos públicos e não os indivíduos corruptos); no entanto, estas acusações põem em destaque a necessidade de mecanismos de governança cuidadosamente planeados que equilibrem a representação de interesses entre autoridades, gestores bancários, funcionários e outros grupos de partes interessadas sem permitir que um grupo tenha influência desproporcionada (seja pela parte dos altos quadros da administração do banco seja pela parte das autoridades eleitas, por exemplo). Se isso for alcançado, os benefícios das autoridades democraticamente eleitas terem um palavra a dizer nos assuntos dos bancos são claros para a representação de interesse público. Os bancos públicos têm um longo registo de fornecer serviços seguros, de “banca tradicional” às PME (por exemplo, as Sparkassen alemãs) e financiamento de infraestruturas de longo prazo (por exemplo, KfW). No entanto, eles também podem ter problemas se não houver restrições sobre as suas atividades. Após a decisão de remover o apoio estatal ao banco Landesbanken da Alemanha, alguns moveram-se agressivamente para novos instrumentos financeiros, principalmente as titularizações de hipotecas residenciais dos EUA, resultando em enormes perdas [62].
Um terceiro exemplo de um banco de partes interessadas é aquele em que todos os funcionários têm representação significativa no processo de tomada de decisão do banco: se feito corretamente, isso aumenta claramente a participação e a representação de interesses de uma parte interessada de dimensão significativa. Os empregados são igualmente provavelmente também clientes, e indiscutivelmente os seus interesses são provavelmente muito mais variados a longo prazo do que simplesmente estar a maximizar a rentabilidade do acionista. A codeterminação , como é comum na Alemanha por exemplo, é um modelo de representação dos empregados, isto é, os acionistas e os empregados participam conjuntamente nas modalidades de governança. No entanto, estes acordos devem mais uma vez ser cuidadosamente geridos para obter um verdadeiro equilíbrio e garantir que a gestão não seja simplesmente porta-voz da representação dos empregados ou que os interesses dos trabalhadores sejam sujeitos a interesses mais poderosos.
A regulação e a infraestrutura favorecem os grandes bancos
O atual ambiente para a banca europeia leva a que se possa prever mais obstáculos, tendendo a favorecer os bancos maiores, resultando em custos mais elevados/lucros mais baixos, em pressões para crescer e/ou pressões para se comportarem como bancos acionistas. Por exemplo, os bancos menores tendem a não ter acesso a infraestruturas como, por exemplo, sistemas de pagamentos em pé de igualdade com os bancos maiores. Os bancos menores (bancos de partes interessadas são tipicamente pequenos ou médios bancos) têm frequentemente que utilizar os grandes bancos para terem acesso a essas infraestruturas, colocando-se assim em desvantagem.
A pressão para crescer pode pôr em risco os bancos de partes interessadas
Da mesma forma, a filosofia do quadro regulamentar pode ser considerada estar a favorecer mais os grandes bancos de acionistas do que os pequenos bancos de partes interessadas [63]. A regulação quanto à adequação de capital constitui um claríssimo exemplo sob várias formas. Os acordos de Basileia e a sua aplicação ao direito europeu e nacional criam uma tendência para a centralização: não só a rede centralizada tende a reduzir os requisitos de adequação de capital, mas também os acordos de Basileia exigem que os procedimentos internos, especialmente no que se refere aos riscos de gestão, sigam os cálculos de requisitos de adequação de capital e são igualmente centralizados. Os bancos cooperativos e as redes de apoio mútuo dos bancos cooperativos operam numa base descentralizada. Um modelo em rede/descentralizado é indiscutivelmente mais seguro de uma perspetiva macroprudencial [64] e um foco local melhora a participação pública e a representação de interesses. A pressão regulatória para centralizar, portanto, pode ir contra o interesse dos bancos de partes interessadas, forçando-os a manter mais capital do que os bancos de acionistas equivalentes ou a mudar o seu modelo de atividade para se tornar mais próximo do comportamento de bancos de acionistas. Da mesma forma, e talvez mais importante, o uso da abordagem de modelos internos para o cálculo do rácio de capital adequado que recompensa os bancos com menores requisitos de capital, só é possível para os bancos muito grandes pois os seus custos fixos torna-o inviável para os bancos menores (ou seja, para bancos de partes interessadas que permanecem bancos locais e restritos nas suas atividades).
Em suma, os bancos de partes interessadas potencialmente oferecem uma via poderosa para os grupos de partes interessadas que compõem o público em geral para melhor representar os seus interesses. No entanto, são necessárias medidas que aumentem a sua eficácia e que ao ser assim se protejam de deslizarem para o comportamento do banco acionista. Estas medidas incluem a necessidade de efetuarem acordos de governança, restrições às atividades, e infraestrutura que ofereça suporte a redes de bancos menores [65].
Em jeito de conclusão: políticas para tornar os bancos mais abertos à representação de interesse público
Este capítulo salientou alguns aspetos em que a atual estrutura do sector bancário europeu bloqueia a participação pública e a representação dos interesses. A análise sugere várias áreas em que as mudanças políticas poderiam responder a estas questões (desenvolvidas mais amplamente no capítulo 6).
O setor bancário europeu necessita ser reequilibrado
Em primeiro lugar, o domínio dos bancos muitíssimo maiores exacerba a capacidade da alta administração bancária para suprimir a representação de interesse de outras partes interessadas. É necessário reequilibrar o sector dos bancos muito grandes para um universo mais diversificado de pequenos e médios bancos, para o bem geral das economias da Europa e para uma melhor representação dos interesses públicos. Acima de tudo isso requer que se acabem com os bancos “demasiados-grandes-para-falirem”.
Encorajar a atividade bancária tradicional
Em segundo lugar, exige políticas para promover bancos de partes interessadas, que tendem a ser menores, mais tipicamente bancos tradicionais a concederem créditos à economia real (, e não a fazerem as suas transações com empresas financeiras), ancorados nas comunidades locais e que apresentam oportunidades claras e diretas para a público ser ativo na sua governança.
(continua)
Texto disponível em http://www.finance-watch.org/our-work/events/1284-public-interest-banking
Notas
[53] Greenham & Prieg, 2012; Ayadi et al, 2016
[54] A realidade no Reino Unido mostra que os encerramentos de sucursais (especialmente o encerramento do último banco da aldeia) deprime o fornecimento de crédito das PME e tem impacto na economia local. Os encerramentos são mais frequentemente em áreas mais pobres e rurais enquanto a abertura de novas agências é mais provável verificar-se em áreas ricas.
[55] e.g. Jensen and Meckling, 1976
[56] Lindo, 2013
[57] Greenham & Prieg, 2012:8
[58] Ayadi et al, 2016
[59] Greenham & Prieg, 2012:4
[60] Greenham & Prieg, 2012; Ayadi et al, 2016
[61] Greenham & Prieg, 2015:29
[62] IKB também se expandiu a partir da prestação de serviços bancários para as PME e também sofreu perdas devastadoras em titularizações (Financial Times, 2007).
[63] Nas sessões abertas ouvimos histórias de diretores de bancos muito pequenos de partes interessadas que passavam meses a explicar os seus modelos de negócios numa tentativa de obter uma licença bancária para os reguladores acostumados a lidar com bancos grandes ou acionistas.
[64] Os bancos em rede só podem oferecer um ao outro uma quantidade limitada de apoio, no entanto, é possível conter perdas pesadas em um banco sem ameaçar toda a cadeia (o oposto dos bancos muito grandes para falir, onde as perdas numa parte do banco são altamente contagiosa ao resto da instituição [e daí contagiosas a todos outros bancos].
[65] O NEF recomenda que os bancos das partes interessadas sejam legalmente protegidos de serem privatizados, devem ser restringidos geograficamente e nas suas atividades, devem existir em redes com instituições centrais firmemente controladas e requerem apoios de longo prazo, a baixo custo de capital para evitar uma corrida aos lucros ou ofertas públicas. (Greenham & Prieg, 2012)