A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ? Texto 31. Banco de Inglaterra quebra o tabu do não-financiamento governamental. Por Martine Orange

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Um mês de março intenso em reuniões, em tragédias, em desacordos afirmados, em acordos adiados, em ameaças feitas e desfeitas ou adiadas, tudo isto se passou na União Europeia que se mostra claramente impotente face à tragédia Covid 19 e à crise financeira que nos bate à porta com uma enorme violência.

Um relato destes dias que mais parecem dias de loucura é o que aqui vos queremos deixar nesta série de textos intitulada A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ?

31/03/2020

JM

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Texto 31. Banco de Inglaterra quebra o tabu do não-financiamento governamental.

Martine Orange Por Martine Orange

Publicado por Mediapart(La banque d’Angleterre brise le tabou du non-financement des Etats) em 09/04/2020 (ver aqui)

 

O banco central britânico financiará diretamente o Tesouro para o ajudar a fazer face à devastação sanitária e económica provocada pela epidemia do Covid-19. Um dos pilares do neoliberalismo desmorona-se.

 

No dia 9 de Abril caiu um tabu. E não um tabu qualquer. Um dos pilares do neoliberalismo: a independência dos bancos centrais e a proibição financiarem diretamente os Estados. O Banco de Inglaterra anunciou, de manhã cedo, que iria financiar diretamente “numa base temporária e de curto prazo” as despesas adicionais do Governo britânico relacionadas com as consequências da pandemia do Covid-19.

A partir de agora, todas as novas emissões do Tesouro serão subscritas diretamente pelo banco central. Isto significa que o governo deixará de ter de passar pelos mercados obrigacionistas e poderá escapar às restrições e exigências dos mercados financeiros, pelo menos momentaneamente.

Embora o Banco de Inglaterra já tivesse utilizado este mecanismo muito brevemente e de forma muito limitada (apenas 20 mil milhões de libras esterlinas na época) na altura da crise de 2008, esta decisão marca uma reviravolta dramática, tanto intelectual como prática. Porque desta vez, o Banco de Inglaterra diz estar disposto a conceder um financiamento ilimitado, dada a gravidade da crise provocada pelo coronavírus.

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Andrew Bailey, governador do Banco de Inglaterra © Tolga Aklen / AFP

O novo governador do Banco de Inglaterra, Andrew Bailey, tinha excluído o recurso a um tal dispositivo. Em meados de Março, considerava que tal medida não era adequada para lidar com a epidemia do coronavírus. Em 6 de Abril, continuava a utilizar uma coluna do Financial Times para se opor a todas as propostas de monetização da dívida pública britânica.

A ideia é avançada pelos apoiantes da Política Monetária Moderna, que argumentam que os Estados podem financiar-se a si próprios tanto quanto querem através da criação de dinheiro, especialmente para iniciar a transição ecológica. Foi recentemente retomada por Adair Turner, antigo presidente da Autoridade dos Serviços Financeiros do Reino Unido durante a crise de 2008. Na sua opinião, dadas as circunstâncias excecionais, os bancos centrais devem alinhar-se atrás dos governos para os ajudar a fazer face a este cataclismo económico.

A monetização da dívida “prejudicaria a credibilidade [do banco central] no controlo da inflação ao minar a sua independência operacional. A prazo isto iria conduzir a um balanço insustentável do banco central e é incompatível com a prossecução de um objetivo de inflação por um banco central independente“, escreveu Andrew Bailey no domingo. Em apoio à sua afirmação, citava os exemplos inevitáveis da República de Weimar, na década de 1920, ou do Zimbabué, que tanto fez a rotativa trabalhar a imprimir notas de banco para se financiar a si própria, que levou a uma hiperinflação de vários milhares de por cento e à destruição da economia.

A conversão brutal do Governador do Banco de Inglaterra ilustra a enorme convulsão que a pandemia do coronavírus está a causar em todo o mundo. Entretanto, os primeiros números da devastação provocada por esta crise sanitária, os confinamentos impostos, o encerramento da economia em quase todos os países começaram a aparecer. São espantosos, sem precedentes nos países em tempo de paz. De um país para outro, entre um quarto e um terço da economia está parada. Milhões estão desempregados ou desempregados a tempo parcial. E, contrariamente às esperanças alimentadas pelos governos e pelos financeiros, esta crise promete ser longa, imprevisível, marcada por uma recessão que deverá ser muito forte e muito longa.

Confrontados com esta situação extraordinária, todos os economistas, mesmo os mais liberais, só veem os Estados como os únicos capazes de segurarem com firmeza as economias em colapso. Porque também neste domínio os dogmas estão a ser postos de lado: o Estado, que é suposto ser a fonte de todos os problemas, está a tornar-se a solução. “Os governos devem continuar a apoiar o setor privado, incluindo a tomada de participações de capital, e o emprego. Tal exigirá um aumento acentuado das despesas e dos investimentos públicos, enquanto as receitas diminuem. Uma política monetária ultracomodativa continuará a ajudar a aumentar as dívidas…. As fortes exigências das finanças públicas não devem conduzir a uma dívida insustentável que assuste os mercados: isto exige uma reflexão nova e criativa sobre as questões de política macroeconómica“, argumentou Laurence Boone, economista-chefe da OCDE, nos últimos dias. Uma instituição que há mais de vinte anos tem denunciado sistematicamente a dívida pública.

Desde que a epidemia atingiu a Europa, os governos já anunciaram planos no valor de dezenas de milhares de milhões para apoiar as suas economias e empresas. Mas tudo está a sair a um ritmo acelerado.

Após o início do confinamento, o Reino Unido necessita de mais 2,5 mil milhões de libras (2,8 mil milhões de euros) por dia para satisfazer as necessidades imediatas (hospitais, seguro de desemprego, assistência às empresas).

Para abril, o Governo já planeou triplicar as suas idas ao mercado de capitais em relação às suas previsões: em vez de 15 mil milhões de libras esterlinas, prevê angariar 45 mil milhões de libras esterlinas dentro de um mês. Mas isto é apenas a ponta do icebergue, receiam alguns economistas, pois esperam que o governo enfrente gigantescas necessidades de financiamento. As estimativas iniciais sugerem que a dívida adicional da Grã-Bretanha poderá exceder 200 mil milhões de libras esterlinas este ano.

O aumento da procura nos mercados, em concorrência com todos os outros Estados, poderá levar a um aumento das tensões, fazer subir as taxas com o risco de criar uma dívida insustentável e provocar novas crises de dívida soberana.

Neste contexto, a decisão do Banco de Inglaterra de adquirir diretamente as novas emissões de dívida constitui um auxílio incomensurável ao Tesouro do Reino Unido. Sabe que tem segurança ilimitada neste momento de provação, mesmo que seja “temporário e de curto prazo“. “Este mecanismo facilitará temporariamente os fluxos de tesouraria do governo e apoiará o funcionamento do mercado, minimizando o impacto imediato da captação de fundos adicionais nos mercados obrigacionistas e monetários“, afirmou o Tesouro num comunicado.

O Banco de Inglaterra pode fazer escola com este exemplo? Certamente nos Estados Unidos. A Reserva Federal já afetou recursos ilimitados para apoiar o mundo financeiro e certas empresas. Diz que está pronto para ir para além disso, se houver necessidade. Na realidade, existem precedentes. Em 1941, a Reserva Federal abdicou totalmente da sua independência e forneceu financiamento ilimitado ao Governo dos Estados Unidos em nome do “esforço de guerra“.

Na Europa, a dúvida é mais do que permitida. Embora o Banco Central e o Governo britânico não hesitem em contornar todas as regras e costumes para fazer face a uma crise sem precedentes, os Ministros das Finanças europeus continuam a discutir em intermináveis reuniões do Eurogrupo se é ou não possível contornar certas condições nestes tempos inéditos. Assim, imaginar que eles poderiam tocar na independência do BCE e financiar diretamente os Estados, princípios que estão consagrados nos Tratados europeus, é um mito. A União Europeia prefere ver as suas economias afundarem-se, como tem feito com a austeridade imposta ao longo desta década, ou mesmo a estilhaçarem-se todos, do que tocar nos seus dogmas. Para ela, um tabu não pode ser quebrado.

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A autora: Martine Orange [1958 -], jornalista da área economia social em Mediapart desde 2008, ex-jornalista do Usine Nouvelle, Le Monde, e La Tribune. Vários livros: Vivendi: A French Affair; Ces messieurs de chez Lazard, Rothschild, um banco no poder. Participação em obras colectivas: a história secreta da V República, a história secreta da associação patronal, Les jours heureux, informer n’est pas un délit. Recebeu o prémio de ética Anticor em 2019.

 

 

 

 

 

 

 

 

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