A propósito da crise económica dita Covid 19: a reforma do Mecanismo Europeu de Estabilidade, uma arma apontada à Itália, ou o regresso às falidas políticas austeritárias – um tema de que não se fala em Portugal. 2 – O funcionamento do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) e as suas perspetivas de reforma. Por Vladimiro Giacché

 

A reforma do MEE que vinha a ser preparada desde 2019 (decisão do Conselho Europeu de 14/12/2018), e sofreu um abrandamento com a crise do Covid e também pela oposição da Itália, acabou por ser aprovada no Conselho de 30/11/2020. Segue-se em 2021 o processo de ratificação pelos respetivos Estados-membros.

Estranhamente, instalou-se um silêncio ensurdecedor em torno deste assunto: apenas a Itália vinha a opor resistência ao avanço do processo e, salvo uma ou outra exceção (v.g. Wolfgang Münchau), são principalmente autores italianos os que têm levantado justificadas críticas à continuação da existência do MEE e ao prenúncio de regresso às políticas de austeridade que representa este MEE reformado.

Finalmente, o governo italiano, e à revelia das promessas feitas por um dos parceiros da coligação (o Movimento 5 Estrelas) ao seu eleitorado, cedeu. Mas, como diz Giuseppe Liturri (in “Porque é que o acordo maioritário sobre o MEE é um suicídio negocial”) “a noção enganadora de que um empréstimo MEE pode ser uma escolha discricionária é uma piedosa ilusão”, e “quem se ilude e ilude os italianos [n.ed., e outros que não apenas os italianos] acerca de um compromisso razoável entre a reforma do MEE aceite hoje e outras reformas favoráveis a nós que virão amanhã, está a mentir, sabendo que está a mentir”.

Mas, afinal, o acordo estabelecido pelo Conselho Europeu de 17/21 de julho passados sinalizava já com clareza o caminho de regresso à aplicação do modelo neoliberal de políticas austeritárias, de domínio de umas nações sobre outras. A reforma do MEE é, tão somente, um dos passos desse caminho.

FT

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

 

2. O funcionamento do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) e as suas perspetivas de reforma

 Por Vladimiro Giacché

Audiência informal de Vladimiro Giacché, Presidente do Centro Europa Ricerche junto das Comissões V e XIV da Câmara dos Deputados (original aqui)

20 de Novembro de 2019

 

 

Ao comentar a proposta de reforma do MEE é útil começar por dizer que a Itália, de acordo com o conhecido estudo de Reinhart e Rogoff, pertence ao grupo de países que nunca experimentaram um incumprimento da dívida pública em tempo de paz. O mesmo não se pode dizer de outras economias da Zona Euro, como a Alemanha em primeiro lugar, mas também a Áustria, Portugal, Espanha e Grécia. O mesmo estudo mostra também que o incumprimento da dívida em países economicamente avançados é extremamente raro e, com a única exceção da Grécia, nunca ocorreu nos últimos 65 anos [1].

É importante ter estes dados básicos em mente, porque na proposta de reforma do MEE o foco parece estar principalmente na possibilidade de um risco sistémico gerado, dentro da zona Euro, pelo incumprimento da dívida pública de um dos países membros. Deste ponto de vista, o MEE constitui um novo reforço das regras que regem a política orçamental dos países da Zona Euro, avançando em perfeita continuidade com as alterações introduzidas no Pacto de Estabilidade em 2012.

À luz desta abordagem, e antes de entrar nos pormenores mais técnicos, sobre os quais já posso afirmar que partilho as dúvidas fundamentadas já aqui expressas pelo Prof. Gianpaolo Galli [2], duas questões básicas têm de ser colocadas sobre o MEE:

  1. é útil para a Zona Euro?
  2. é útil para a Itália?

1. Primeira questão: o MEE, na sua formulação proposta, é útil para a Zona Euro?

A fim de responder a esta pergunta, é necessário, em primeiro lugar, verificar até que ponto a dívida pública – mas, mais geralmente, os problemas inerentes à disciplina orçamental – constitui hoje um fator de risco para a moeda única. Considerem-se os dados do Quadro 1, que mostra os resultados de algumas regressões simples referentes aos vinte anos de funcionamento da moeda única. Os termos de comparação são os Estados Unidos, que é um ponto de referência natural para a análise comparativa da dinâmica económica, e o Reino Unido, que após o Brexit está prestes a tornar-se uma referência incontornável para a Zona Euro.

 

Em termos de resultados, a projeção linear do défice público mostra que na Zona Euro se registou um coeficiente de tendência negativa de 0,044 pontos, o que em vinte anos levou a uma redução do nível do défice público sobre o PIB de 0,7%. Tanto os Estados Unidos como o Reino Unido registaram tendências opostas, com coeficientes de tendência positiva da ordem dos dois décimos de ponto e um aumento do défice superior a 6% num caso e da ordem dos 3% no outro caso. Por conseguinte, não pode haver grandes dúvidas de que a zona Euro no seu conjunto cumpriu os preceitos da disciplina orçamental.

Isto refletiu-se na dinâmica da dívida, que foi mais favorável na zona euro do que nos outros dois países. De facto, os resultados da regressão mostram que a dívida na zona da moeda única tem seguido uma trajetória ascendente com um coeficiente de tendência de 1,5 pontos, menos de metade do observado nos Estados Unidos e no Reino Unido. De facto, nos últimos vinte anos, a dívida pública na Zona Euro aumentou cerca de 16 pontos em percentagem do PIB, em comparação com quase 52 e 46 pontos nos Estados Unidos e no Reino Unido. Também deste ponto de vista, a zona da moeda única é caracterizada por políticas orçamentais mais rigorosas do que os países anglo-saxónicos.

No entanto, a dívida também aumentou na zona euro, o que está a pressionar para a adoção de mecanismos de controlo ainda mais rigorosos, que é o objetivo da reforma do MEE. Basicamente, considera-se que, uma vez que o objetivo de redução da dívida não foi alcançado, a disciplina dos países membros deve ser reforçada. No entanto, trata-se de um erro de análise que não deve ser endossado. É bem conhecido que a dinâmica da dívida depende de dois fatores: a capacidade de manter taxas de crescimento do PIB nominal superiores às da dívida primária e o nível das taxas de juro. O papel desempenhado por estes fatores na condução da tendência da dívida europeia é também mostrado no Quadro 1, mais uma vez utilizando a técnica da regressão linear. É fácil de ver como:

  • do lado das taxas de juro, a dinâmica europeia tem sido semelhante à dos Estados Unidos e do Reino Unido, com a redução dos seus rendimentos que favoreceu uma diminuição da dívida, com coeficientes de tendência entre -0,06 e -0,1 e uma contribuição para a redução da dívida que aumentou ao longo dos vinte anos em quase 1,5% em percentagem do PIB;
  • do lado do crescimento do PIB, foi determinada uma dinâmica oposta no que diz respeito aos Estados Unidos e ao Reino Unido. Nestes dois países, de facto, a contribuição do PIB para a redução da dívida aumentou com um coeficiente de tendência de 0,09 e um valor de 0,5% e 1%, respetivamente, em percentagem do PIB; na Zona Euro, pelo contrário, houve uma inversão da contribuição do PIB, o que no período levou a um aumento – não a uma redução – da dívida, com um coeficiente de tendência de 0,03 e um valor de 0,9% em percentagem do PIB.

 

É de notar que o efeito inverso encontrado para o PIB ocorreu apesar de, como vimos, a Zona Euro ter reduzido o nível do seu défice público, ao contrário dos Estados Unidos e do Reino Unido. A análise diz-nos portanto que o abrandamento do PIB nominal foi proporcionalmente mais pronunciado do que a melhoria do saldo orçamental, resultando num efeito negativo. Isto é precisamente um derivado da ineficiência do modelo político europeu, que se presta claramente a ser ultrapassado porque não se deve exigir uma disciplina orçamental ainda maior, mas sim a recuperação de taxas de crescimento mais robustas. A reforma proposta do MEE, no entanto, centra-se apenas no primeiro aspeto e vai assim no sentido de acentuar, em vez de reduzir, esta ineficiência.

A este respeito, a última linha do Quadro 1 recorda as alterações nos saldos das contas correntes, cuja acumulação se tornou, como sabemos, um elemento fundamental do modelo europeu. A extrapolação das tendências de vinte anos mostra a dinâmica oposta observada na zona da moeda única, onde o coeficiente de tendência é positivo e igual a 0,2, e no Reino Unido, onde é negativo e igual a 0,14. O coeficiente de tendência também é positivo nos Estados Unidos (0,12), mas ainda é cerca de metade do valor da zona Euro e, sobretudo, é determinado num contexto de um défice permanente e não de uma acumulação de excedentes. De facto, nos últimos vinte anos, os Estados Unidos mantiveram o seu défice da balança corrente substancialmente inalterado, enquanto que no Reino Unido piorou quase 2 pontos em percentagem do PIB, enquanto que na Zona Euro o excedente aumentou 3 pontos.

Nos últimos anos, portanto, a dependência do crescimento da procura externa tem aumentado na zona Euro. Esta dependência é indiretamente referida na proposta de reforma do MEE, onde a ausência de desequilíbrios macroeconómicos é também mencionada como uma condição prévia para o acesso à linha de crédito condicional de precaução [3]. No entanto, esta exigência é claramente desproporcionada em relação à atenção prestada aos indicadores das finanças públicas. Embora esta desproporção possa parecer óbvia, uma vez que, como já foi dito, o MEE pretende ser associado à presença de riscos inerentes à dívida pública, ela representa mais um erro de perspetiva na abordagem da política económica europeia.

Embora, de facto, a discussão continue a centrar-se nos alegados riscos de uma crise da dívida, a dinâmica da economia europeia está a sofrer as repercussões do súbito colapso do comércio internacional. Os dados do CPB Trade Monitor, mostrados no Gráfico 1, indicam que o comércio mundial tem vindo a contrair-se desde Junho passado.

Numa média anual, o comércio mundial registará uma variação negativa da ordem dos 0,5% este ano, em comparação com os aumentos de 3,4% e 4,7% registados em 2018 e 2017, respetivamente. O impacto desta contração na economia europeia é frontal. Na Alemanha, as marcas de produção industrial, líquidas do sector automóvel, diminuem na ordem dos 4,5%; em Itália, os últimos dados indicam que a contração ultrapassou os 2%. Do lado das exportações, os dados das contas nacionais medem para a Alemanha um aumento, entre o último trimestre de 2018 e o segundo trimestre de 2019, de apenas 0,4%, em comparação com 4,2% há um ano. Em Itália, as exportações estão a aguentar-se melhor, mas ainda caíram, nos últimos três trimestres, de um aumento de 3,3% para um aumento de 2,4%. Evidente é então o efeito de contágio que deriva também para o nosso país do abrandamento na Alemanha e nos outros países da moeda única: de acordo com dados Istat de fontes aduaneiras, nos primeiros nove meses de 2019 o valor das nossas exportações para a União Europeia e para países extra-europeus aumentou de 1,4% e de 2,5%; só para a zona euro o aumento ficou apenas em 0,4%.

As previsões à baixa das organizações internacionais sugerem que o abrandamento do comércio mundial ainda não terminou, uma vez que a probabilidade de uma recessão global em 2020 aumentou. A particular exposição da Zona Euro ao abrandamento do comércio mundial significa que o abrandamento do ciclo económico pode ser mais pronunciado entre os países da moeda única.

A discussão sobre a reforma do MEE não pode ignorar esta possível evolução do comércio mundial e do ciclo de crescimento, porque estes fatores também afetam diretamente as perspetivas das finanças públicas. Em termos técnicos, somos novamente confrontados com o problema típico de um choque simétrico (a contração do comércio mundial) que pode gerar efeitos assimétricos em economias individuais. Face a um enfraquecimento das previsões de crescimento, os mercados poderiam adotar um comportamento de “fuga para a qualidade” e, por conseguinte, penalizar países com um nível de dívida pública mais elevado, como a Itália. Isto, claro, independentemente da capacidade real do sistema económico para contrariar o choque original, uma capacidade que neste momento – é de salientar – parece ser maior em Itália do que na Alemanha, como mostram os dados de produção e comércio externo que acabam de ser mencionados, que são melhores em Itália do que na Alemanha.

A necessidade de identificar mecanismos para compensar os efeitos assimétricos gerados por um choque comum tem sido o principal problema enfrentado pelo processo de criação da moeda única desde o seu início. Até à data, este problema ainda não foi resolvido. Os cálculos realizados pelo CER utilizando o método de análise de agregados mostram que no final de 2018 ainda era possível separar estatisticamente, como em 1999, o grupo de nações mediterrânicas das nações do chamado “núcleo da Europa”, confirmando o facto de não ter sido feito qualquer progresso na redução deste tipo de risco. Talvez tenha chegado o momento de perceber que a solução dada a este problema, que consistiu em iniciar um processo de generalização do modelo alemão orientado para a exportação, considerado de modo a tornar todos os países da zona euro semelhantes e assim evitar a possibilidade de choques assimétricos, não produziu os resultados esperados. Também não podemos pensar em proceder introduzindo, quase por inércia, elementos sempre novos de rigidez e sempre novas condicionalidades nas políticas económicas e orçamentais. Por outras palavras, precisamos de sair de uma armadilha evolutiva que, apesar dos seus óbvios fracassos, continua a centrar cada inovação institucional na área no princípio original da assimilação a um modelo supostamente “melhor” – um modelo que, além disso, está atualmente a experimentar as suas próprias limitações estruturais.

 

2. Isto levanta a segunda questão a ser respondida: pode a proposta de reforma do MEE trazer benefícios para a Itália?

No momento da adesão à moeda única, os benefícios que o abandono da soberania monetária traria em termos de estabilidade da inflação e maior disciplina orçamental pareciam substanciais. Em grande medida, foi este o caso até à crise, e em particular até 2011, quando a explosão da chamada crise da dívida soberana – que era na verdade uma crise de desequilíbrios comerciais, como sabemos desde pelo menos 2013 [4] – revelou os enormes custos de colocar a união monetária à frente de uma convergência prévia das economias. Nos anos da crise, a União Europeia cometeu graves erros na política económica: infelizmente, a proposta de reforma do MEE agora em discussão parece estar a caminhar na mesma direção.

Consideremos a este respeito os instrumentos de assistência financeira que seriam introduzidos. Existe uma distinção ex-ante entre uma linha de crédito de precaução e uma linha de crédito em condições mais favoráveis: a primeira seria concedida quando uma série de condições fosse satisfeita, nomeadamente ter uma dívida pública sustentável; a segunda seria reservada, ou melhor, “infligida”, a países que não se podem considerar que usufruam de condições económicas e financeiras sólidas [5]. Por outras palavras, os novos instrumentos de apoio financeiro da Zona Euro basear-se-iam numa distinção entre bons e maus, e não é difícil imaginar onde a Itália seria colocada, tendo em conta os indicadores propostos. Basta considerar os quatro critérios de finanças públicas que devem ser tidos em conta: não estar sujeito ao procedimento do défice excessivo; um défice inferior a 3% do PIB; um saldo orçamental estrutural igual ou superior ao valor mínimo de referência; uma relação entre a dívida e o PIB inferior a 60% ou, em qualquer caso, uma redução de 1/20 da parte que exceda 60% do PIB por ano [6]. Como se pode ver, este conjunto de condições (cada uma das quais é uma condição necessária para aceder ao apoio financeiro) também contém uma das regras mais controversas e menos defensáveis do Pacto Orçamental (a última mencionada). Em qualquer caso, este conjunto de regras já prefigura claramente o resultado no que diz respeito à Itália: em caso de necessidade, o apoio financeiro concedido à Itália avançaria para o canal “mau”, aquele sujeito à aceitação de pesadas condicionalidades, que podem mesmo chegar a uma verdadeira reestruturação da dívida. A reestruturação da dívida, explicitamente contemplada no Preâmbulo [7], é agora facilitada pela criação de “CACs de critério único” (cláusulas contratuais que permitem agregar e reestruturar vários títulos de dívida pública com uma única votação dos credores) para todos os títulos com prazo de vencimento superior a 1 ano emitidos a partir de 1 de Janeiro de 2022 [8]. Mas, acima de tudo, a reestruturação prévia da dívida, se esta não for julgada sustentável pelo MEE, torna-se de facto uma condição prévia para o acesso ao “resgate” do próprio MEE [9].

Mas, se for este o caso, que vantagem deveria o nosso país ter da definição de instrumentos de assistência que não parecem ter qualquer elemento de melhoria em relação ao que já é rotineiramente oferecido, por exemplo, pelo FMI? E que vantagem há em aceitar a transmissão aos mercados de critérios precisos com base nos quais se possa verificar a probabilidade de um país ser admitido nos instrumentos “bons” e não nos “maus”, antecipando, pelo contrário, um risco muito sério de especulação à baixa sobre as nossas obrigações do Estado? Mas acima de tudo, qual é a razão que deve levar a aceitar instrumentos de apoio que parecem concebidos para penalizar mais precisamente aqueles que poderiam precisar mais desse apoio?

O Estado italiano gasta quase duas vezes mais em juros do que em investimento público. A prioridade é, portanto, a necessidade de regressar a um caminho de redução da dívida pública, como foi o caso na primeira década da moeda única.

No entanto, deve ficar claro que a reforma do MEE não é um mecanismo facilitador neste sentido. Pelo contrário, tal como foram concebidos, os instrumentos de assistência financeira parecem ser perfeitos para desencadear uma nova crise da dívida, continuando assim os graves erros de 2011-12. Também se pode observar que as propostas recentemente apresentadas pelo Ministro das Finanças alemão, Olaf Scholz, em relação à conclusão da União Bancária Europeia (UBE) são de facto convergentes com as que se referem ao MEE: preveem mecanismos para penalizar a posse de títulos do Estado de acordo com o seu rating e a sua concentração nas carteiras dos bancos do país emissor.

Não é difícil prever que, com toda a probabilidade, a combinação das alterações em discussão, respetivamente, para o Tratado MEE e para o Tratado UBE – se aprovadas como proposto – irá gerar uma forte pressão à baixa sobre os títulos do Governo emitidos pela República Italiana: uma pressão desencadeada pela mudança nas expectativas dos investidores (sobre a possibilidade de reestruturação da dívida italiana, por um lado, sobre a presumível menor procura dos nossos títulos do Governo, por outro), destinada a alimentar-se a si própria devido ao conhecido mecanismo das profecias de autorrealização.

Não seria a primeira vez que o nosso país se vê obrigado a enfrentar uma crise motivada por uma regulamentação. Para encontrar um exemplo no passado recente, é suficiente pensar no que aconteceu ao nosso sistema bancário por ocasião do lançamento da União Bancária Europeia, e em particular a introdução do mecanismo de resgate interno, dito “bail-in”. De facto, entre o final de Novembro de 2015 e 11 de Fevereiro de 2016, ou seja, desde a paragem (provavelmente ilegítima) que a Comissão Europeia deu à intervenção do Fundo Interbancário de Proteção de Depósitos (FITD) para salvar 4 bancos locais – que foram depois enviados para liquidação – até às primeiras semanas após a entrada em vigor do seu refinanciamento, perderam-se 46 mil milhões de capitalização bolsista de ações bancárias de um total de 134,6: um colapso de 35%.

Só este exemplo é suficiente para nos sensibilizar para a importância do apelo de prudência lançado pelo Governador do Banco de Itália, Dr. Ignazio Visco, a 15 de Novembro último, em relação às alterações propostas ao MEE; em relação a estas alterações ele observou, entre outras coisas, que “os modestos e incertos benefícios de um mecanismo de reestruturação da dívida devem ser ponderados contra o enorme risco de que o mero anúncio da sua introdução possa desencadear uma espiral perversa de expectativas de incumprimento, que se pode revelar auto-realizável” [10].

Do ponto de vista da Itália, parece portanto absolutamente razoável solicitar mudanças radicais na estrutura da proposta de reforma do MEE, indicando a possibilidade de conceder apoio financeiro com baixa condicionalidade para as necessidades das finanças públicas, não quando não existem desequilíbrios nestas últimas [11], mas no caso em que sejam respeitados todos os outros critérios definidos fora da esfera do défice e da dívida pública: a ausência de desequilíbrios macroeconómicos excessivos, uma posição externa sustentável, a ausência de vulnerabilidades graves no sistema financeiro que ponham em risco a estabilidade financeira da zona (vulnerabilidades que a Itália não tem e que a Alemanha e a França têm, pelo contrário, devido à grande quantidade de títulos financeiros ilíquidos não avaliados ao seu fair value [12] (em síntese, ao seu valor de mercado) presentes nas carteiras dos seus respetivos bancos), assim como o acesso aos mercados internacionais de capitais. Todos estes critérios são hoje plenamente respeitados pelo nosso país.

Por conseguinte, é correto, como o faz a  Resolução 6/00076 aprovada pela Câmara dos Deputados em 19 de Junho último, apoiar a conveniência de “incluir, nas condições previstas pelo MEE e por quaisquer outros acordos sobre questões monetárias e financeiras, um quadro de indicadores suficientemente detalhados, compatíveis com o estabelecido pelo Regulamento (UE) n.º 1176/2011, que também considera o nível da dívida privada, para além da dívida pública, a dimensão da posição líquida da dívida externa, e a evolução, bem como a dimensão, dos créditos bancários mal parados a fim de evitar excluir a Itália a priori das condições de acesso aos fundos para os quais contribui”. [13]

À luz do acima exposto, a parte da resolução em que o governo se compromete “a opor-se a quadros regulamentares que acabam por forçar alguns países a enveredar por caminhos de reestruturação pré-definidos e automáticos, com substancial privação do poder de desenvolver independentemente políticas económicas eficazes” é também digna de apoio, bem como “no que respeita à reforma do Mecanismo de Estabilidade Europeu, a não aprovar alterações que prevejam condicionalidades que acabem por penalizar os Estados-Membros que mais necessitam de reformas e investimentos estruturais”. [14]

À luz do que se acaba de dizer, se estas razoáveis pretensões expressas pelo Parlamento italiano não forem devidamente tidas em conta pelos nossos parceiros europeus durante as negociações finais para a alteração do MEE, acredita-se que os riscos implícitos são tão grandes que desencorajam o Governo italiano a assinar as alterações ao Tratado MEE.

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NOTAS

[1] C.M. Reinhart, K.S. Rogoff, Questa volta è diverso. Otto secoli di follia finanziaria, 2009, tr. it. Milano, Il Saggiatore, 2010, passim; cfr. in particolare le tabelle 6.1. a p. 111, 10.2 a p. 170 e 10.4 a p. 174.

[2] G. Galli, Audizione presso le Commissioni riunite V e XIV della Camera dei Deputati, 6 novembre 2019.

[3] Precautionary conditioned credit line (PCCL). La precondizione citata si trova Changes introduced in the draft revised text of the ESMT (June 2019), Annex III, 1.b).

[4] The European Crisis and the role of the financial system, speech by V. Constâncio, Vice President of the ECB, Bank of Greece conference on “The crisis in the euro area”, Athens, 23 May 2013.

[5] Changes introduced…, cit., art. 14, Annex III.

[6] Changes introduced…, cit., Annex III, 1.a).

[7] Changes introduced…, cit., [Preambolo] 12B. Il prof. Galli osserva giustamente che l’espressione qui usata, “Private Sector Involvement”, allorché fu adoperata da Angela Merkel e Nicholas Sarkozy il 18 ottobre 2010, “ebbe un effetto deflagrante sui mercati finanziari dell’eurozona” (G. Galli, Audizione…, cit., p. 6.

[8] Changes introduced…, cit., [Preambolo] 11, art. 12.4.

[9] Anche su questo punto appaiono condivisibili le osservazioni espresse in G. Galli, Audizione…, cit., pp. 3-4.

[10] I. Visco, The Economic and Monetary Union: Time to Break the Deadlock, keynote address, OMFIF-Banca d’Italia seminar “The future of the Euro area”, Rome, 15 november 2019.

[11] È lecito ravvisare in questo meccanismo un rinnovato “comma 22”, per cui può chiedere sostegno per la finanza pubblica solo chi non ha problemi di finanza pubblica…

[12] Fair Value: The International Accounting Standards Board defines fair value as the price received to sell an asset or paid to transfer a liability in an orderly transaction between market participants on a certain date, typically for use on financial statements over time. The fair value of all a company’s assets and liabilities must be listed on the books in a mark-to-market valuation. The original cost is used to value assets in most cases. Veja-se : Deloitte, IAS Plus. “IFRS 13—Fair Value Measurement.”  disponível em : https://www.iasplus.com/en/standards/ifrs/ifrs13

[13] Atto Camera, Risoluzione in Asssemblea 6/00076, 19 giugno 2019, seduta n. 192.

[14] Atto Camera, cit., punti 10) e 11).

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O autor: Vladimiro Giacché [1963 – ] é um filósofo e ensaísta italiano. Tem lidado principalmente com economia financeira e política, história da economia e filosofia, com particular referência ao idealismo alemão e à tradição do marxismo. É Chefe de Comunicação, Estudos e Marketing Estratégico no Banco del Fucino (Grupo Igea Banca). Licenciado em Filosofia pela Scuola Normale Superiore de Pisa, pós-graduando-se pela Universidade de Pisa (vencedor do prémio Emilio Bocca pela melhor tese em filosofia em 1997/98). Obteve o diploma de especialização em Filosofia com a tese “Finalità e soggettività. Forme del finalismo nella Scienza della logica di Hegel” (supervisor Nicola Badaloni), depois publicada num volume.

Trabalhou na RAI como diretor do programa Enciclopedia multimédia das ciências filosóficas. Desde 1995 no sector financeiro: até 2006 trabalhou no Mediocredito Centrale (chefe do gabinete de desenvolvimento de recursos humanos, assistente do Presidente, chefe do serviço de estudos e relações externas e do serviço de auditoria interna); de 2006 a 2007 foi chefe do pessoal técnico de Matteo Arpe, CEO da Capitalia. No grupo Sator (2008 a 2020):responsável pelos assuntos gerais da Sator S.p.A. (2008-2015), chefe da função de auditoria interna da Sator Immobiliare SGR S.p.A. (2009-2016), e chefe da função de auditoria interna da Arepo BP S.p.A. (2010-2020). Presidente da News 3.0 (2010-2013), membro do conselho de administração do Banca Profilo (Abril 2016 – Junho 2020) e presidente do Centro Europa Ricerche (Abril 2013 – Agosto 2020). Desde Julho de 2020 é Chefe de Comunicação, Estudos e Marketing Estratégico no Banca del Fucino, empresa-mãe do Igea Banca Banking Group.

Obras mais relevantes: Finalità e soggettività. Forme del finalismo nella Scienza della logica di Hegel” (Pantograf 1990); La Filosofia. Storia e testi (con G. Tognini, La Nuova Italia 1996, 3 volumes); Storia del Mediocredito Centrale (con P. Peluffo, Laterza 1997); Escalation. Anatomia della guerra infinita (con A. Burgio e M. Dinucci, DeriveApprodi 2005); La fabbrica del falso. Strategie della menzogna nella politica contemporanea (DeriveApprodi 2008, 2011; 3ª edizione rivista: Imprimatur 2016), Titanic Europa. La crisi che non ci hanno raccontato (Aliberti 2012, 2 ed.; ed. tedesca 2013), Anschluss. L’annessione. L’unificazione della Germania e il futuro dell’Europa (Imprimatur 2013; ed. tedesca 2014; ed. francese 2015; 2ª edizione Diarkos 2019), Costituzione italiana contro trattati europei. Il conflitto inevitabile (Imprimatur 2015); Lenins ökonomisches Denken nach der Oktoberrevolution (Neue Impulse Verlag 2018); Hegel. La dialettica (Diarkos 2020); Wirtschaft und Eigentum – Staat und Markt im heutigen China (Neue Impulse Verlag 2020).

Giacché editou a tradução italiana e a edição da colecção de escritos de Marx Il capitalismo e la crisi (DeriveApprodi 2009, 2ª ed. 2010, ISBN 978-88-89969-77-9); também editou uma colecção de escritos económicos de Lenine do período 1917-1923: Lenine, Economia della rivoluzione (Il Saggiatore 2017, ISBN 978-88-84282-360-5); finalmente, é autor de numerosos artigos científicos para revistas italianas e estrangeiras.

Finalmente, como Presidente do CER, Giacché foi ouvido várias vezes pelos Parlamentos italiano e europeu, mais especificamente com referência à reforma do MEE (20 de Novembro de 2019, Comissões V e XIV da Câmara de Deputados), bem como à pandemia de Covid-19 e medidas políticas conexas (XIV Comissão da Câmara de Deputados, 11 de Junho de 2020, e Comissão Económica do Parlamento Europeu, 15 de Junho de 2020.

(fonte: Wikipedia, consultado em 20/01/2020)

 

 

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