Nota do editor: dada a extensão do texto, o mesmo será publicado em duas partes.
O meu texto sobre Otelo (ver aqui, aqui e aqui) deu origem a uma troca de correspondência com um industrial do Norte, pessoal e culturalmente muito interessado em algumas das matérias tratadas. Vale a pena reproduzir parcialmente a troca de correspondência havida e por razões que veremos a seguir.
- Primeiro email– é-me pedida uma informação:
“Li o V/ artigo enviado pelo António Gomes Marques e gostava de conhecer a fonte deste interessante gráfico:
- A minha resposta foi a seguinte:
“Meu caro (XXX)
Estou de férias em Faro e não tenho o livro comigo. Não lhe posso pois dizer a fonte dos gráficos. Os dois gráficos estão no livro numerados com os números 4.6 e 4.7, se a minha memória não me falha, e por isso mesmo, tudo indica que será no capítulo IV, possivelmente págs. 167-169 se a minha memória fotográfica não intencional ainda funciona. O livro tenho-o em minha casa. Não creio que se encontre em nenhuma Biblioteca a não ser na FEUC-Coimbra e mesmo aqui por sugestão minha quando já não trabalhava lá, quando já estava reformado. Curiosamente, se a minha hipótese está certa, de que o livro não existe em nenhuma das nossas Faculdades, então isso mostra o estado cultural em que estão as Universidades. Note-se que o livro foi considerado na matéria o melhor livro do ano por várias revistas de referência e se não existe em nenhuma das nossas Faculdades, então… está tudo dito.
Acrescento que na minha opinião os gráficos serão obtidos de instituições internacionais: um tipo como Mody não arriscaria citar um artigo daqueles que são feitos a martelo.
Acrescento ainda que neste livro não existe a palavra esquerda- o que é muito curioso e o discurso de Merkel, a que eu chamo o pesadelo de Merkel, expressa do ponto de vista do autor, Mody, a saída possível para a Europa sair do atoleiro onde mergulhou.
Creio que o editor do blog Francisco Tavares lhe poderá enviar um texto crítico, à esquerda, sobre o livro de Mody, publicado este ano e dois textos que nós publicámos (!) em 2019 relativos a Mody.”
- Resposta do leitor interessado no gráfico:
“Vou encomendar o livro.
Relativamente à expressão “esquerda” ou “direita” é uma questão irrelevante em termos do livro. Eu seguramente não sou considerado de esquerda (como o António Gomes Marques pode confirmar).
Infelizmente andamos a ser governados por sound-bytes “esquerda” / “direita” em vez de sermos governados por bom senso, capacidade técnica e para o bem da população.
Obrigado e um abraço” Fim de troca de emails.
Depois de ter recebido este último email, levantou-se-me a seguinte questão: e se se confirma a minha hipótese de que o livro não existe em nenhuma biblioteca portuguesa com exceção da Biblioteca da FEUC, que conclusões tirar deste facto?
Pesquisei os seguintes sítios eletrónicos:
https://porbase.bnportugal.gov.pt/ipac20/ipac.jsp?profile=
http://www.bnportugal.gov.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=226&Itemid=54&lang=pt
e o que confirmei foi que o livro só existe na Biblioteca da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Sublinho que o livro EuroTragedy: A Drama in Nine Acts, de Ashoka Mody, foi considerado livro do ano ou livro de referência do ano por:
Association of American Publishers- 2019; Livro do ano em Economia
Foreign affairs- livro do ano sobre Europa Ocidental -2018
The Economist um dos livros do ano 2018
Corriere della Sera 2018
Martin Wolf The Economist Verão de 2018 um dos livros de referência.
A partir daqui, a primeira conclusão a tirar é imediata:
- Da parte dos responsáveis pela gestão direta da Biblioteca da FEUC, haverá um sentido apurado sobre os livros a adquirir e nessa tarefa, creio eu, terão estado empenhados nesse trabalho o Prof. Doutor Carlos Fortuna (coordenador da Biblioteca) e a Dra. Ana Serrano (Bibliotecária) e assim se explica que este exista na Biblioteca da FEUC. Passaram quase 3 anos após a publicação do livro reputado por todo o lado como uma obra de referência sobre o processo de integração da Europa e, no entanto, este livro não é visível em nenhuma estante das bibliotecas portuguesas. Ora, não haverá hoje nenhuma Faculdade de Economia em Portugal que não tenha pela menos uma unidade curricular diretamente ligada à temática deste livro e, sendo assim, ainda é mais de estranhar esta ausência nas estantes.
A segunda conclusão, bastante simplista, que daqui se pode tirar é a seguinte:
- O processo de renovação dos programas das disciplinas em Portugal é um processo muito lento face ao que seria pensável numa sociedade evoluída, dinâmica, aberta e disposta a questionar o real naquilo que neste não é entendível ou que é constantemente sinal de mudança.
Seriam estas as duas imediatas conclusões que se poderiam retirar da falta deste livro nas prateleiras das Bibliotecas de Ciências Sociais, e não só de Economia, portanto.
Mas a segunda conclusão remete-nos de imediato para o texto por nós escrito relativamente a Otelo, uma vez que nos remete para o desenvolvimento das forças produtivas em Portugal. Ou seja, a ausência do livro de Mody nas bibliotecas de Ciências Sociais remete-nos para um outro problema que lhe está ligado: o problema do ensino em Portugal e não será abusivo, creio eu, considerar esta falta nas prateleiras das Bibliotecas portuguesas como um indicador significativo da má qualidade do ensino superior em Portugal.
A partir daqui penso que a ausência desta obra nas prateleiras, onde deveria estar e a ser utilizada com a frequência que a obra merece face à crise europeia que se vive, se deve às extraordinárias entorses de um ensino superior que cada vez se afasta mais das ideias defendidas por Ashoka Mody e por nós apresentadas no texto sobre Otelo. É esta ausência nas Bibliotecas portuguesas que agora procuramos explicar.
Destas múltiplas entorses salientamos 3 que iremos apresentar de uma forma resumida:
- A trágica evolução e degradação das licenciaturas em Portugal nos últimos 15 anos
- O terrível enquadramento dos objetivos exigidos aos docentes transforma-os em simples burocratas de plataformas digitais, tipo Nónio, e com uma função principal, investigar, investigar, publicar, publicar. O ensino é aqui, nestes objetivos, uma peça pura e simplesmente acessória.
- O tipo de estudantes que temos e /ou que pretendemos ter.
1. A trágica evolução e degradação das licenciaturas em Portugal nos últimos 15 anos
Sobre o primeiro ponto, vejamos a evolução das licenciaturas nos últimos 15 anos.
A generalidade das licenciaturas, passaram de planos de curso de 5 anos para 4 e depois para 3 anos. E os mestrados de duração de 2 anos foram generalizados para metade do tempo, um ano.
Na passagem de 5 anos para 4 anos a carga horária das disciplinas opcionais passou de 5 para 4 e lentamente foram desaparecendo os “cadeirões ” anuais e com cargas horárias pesadas. Com a passagem de 4 anos para 3 anos – a grande reforma de Bolonha – deu-se o desastre total. Esta passagem trouxe ainda outras: acelerou-se o desaparecimento de disciplinas anuais, transformadas praticamente todas em disciplinas semestrais e com uma redução de carga horária por disciplina.
Dou dois curtos exemplos, as disciplinas de Economia Internacional e Macroeconomia. Em Macroeconomia, a solução foi simplesmente reduzi-la de anual para semestral e de 5 horas semana para 4 horas. Em Economia Internacional dividiu-se a disciplina em duas disciplinas semestrais: Economia Internacional (primeiro semestre) e Finanças Internacionais (segundo semestre), em que foi reduzida a carga horária que passou em ambas de 5 horas para 4 horas. Uma redução fatal. Anteriormente, os tempos letivos eram de 2 aulas teóricas de 1h30 cada e uma aula prática de 2 horas. Ao passarem para 4 horas a distribuição nas duas disciplinas agora criadas foi de 2 horas teóricas e duas horas práticas em cada uma delas. Repare-se: estas duas disciplinas semestrais perderam um terço do seu tempo de aulas teóricas que tinham anteriormente. Isto pressupondo que os alunos chegavam ao último ano da licenciatura, o 3º ano, nas mesmas condições que anteriormente, o que não é verdade. Chegavam ao terceiro ano intelectual e emocionalmente muito mais pobres, o que obrigava à redução de ritmos de ensino e isto representava obrigatoriamente mais cortes na matéria a lecionar. Quando falo de emocionalmente, refiro-me à maturidade emocional muito importante para desencadear a maturidade lógica e abstrata. Resumo: isto representa um corte de matéria na ordem dos 45%. Com muito esforço dos docentes nestas disciplinas, a redução ter-se-á cifrado em cerca de 35-40%, mas não menos.
Bom, a não ser os nossos ministros do Ensino Superior ninguém até hoje inventou a possibilidade de se fazer omeletes sem ovos, sem frigideira e sem gordura. Aparentemente, os cursos ao passarem de 4 para 3 anos reduziram, de um quarto de formação, mas não é verdade. Reduziram muito mais com a redução da carga horária, como acabei de assinalar. Mas reduziram ainda mais quando entramos em linha de conta com a maturidade emocional. Não esqueçamos que a redução de anos letivos dá-se num período de forte crescimento intelectual dos jovens, assim deveria ser, trata-se de uma redução de um ano em quatro, ou seja, uma redução de 25% e não é a mesma coisa ensinar dadas matérias de formação globalizante a alunos com 3 anos de ensino superior ou com quatro anos. O grau de motivação emocional, cultural e de abstração é completamente diferente. Dou um exemplo: antes da reforma de Bolonha, dava-se em finanças internacionais um capítulo que tinha por base os conhecimentos de Macroeconomia e que tinha como objetivo ensinar os multiplicadores da economia keynesiana, numa perspetiva globalizante. Era a parte mais fácil da disciplina. Depois a disciplina de macroeconomia reduziu-se a uma disciplina semestral e as bases de que se partia em Finanças Internacionais esfumaram-se e a mesma matéria tornou-se então a parte mais difícil da disciplina. Isto obrigou-nos a refazer a lecionação dessa matéria, mas nunca é a mesma coisa que partir de conhecimentos já sedimentados mesmo que lá estejam de forma “adormecida”. O lastro conta e dinamiza o que se lhe sobrepõe. Esta é a minha experiência, mas repare-se: a compressão das cargas horárias reduz ainda mais esta lógica da sedimentação, logo, reduz ainda mais a aprendizagem do que é e do que não é “essencial”, sendo certo que o que não é essencial é muitas vezes bem mais importante do que o que é essencial. Mas desta verdade os nossos atuais ministros nada sabem.
Uma antiga aluna minha (Paula S.) resumia a nova situação das disciplinas por mim lecionadas da seguinte maneira: com essas facilidades todas será que perdemos o direito a abraçar-nos e saltar de alegria quando vencíamos estes obstáculos e víamos isso escrito na pauta? Bom, a pauta coletiva deixou de estar publicamente disponível, o que não deixa de ser curioso para quem está a aprender a viver em sociedade, logo as manifestações coletivas e os abraços desapareceram, e as mesmas disciplinas mantiveram-se como obstáculos maiores, apesar dos cortes, porque o nível de conhecimentos das disciplinas que as precedem também desceram e o nível intelectual dos estudantes, devido a tudo isto, também se reduziu. E assim se pretende caminhar para um mundo onde se quer fazer omeletes sem ovos, sem frigideira, sem gorduras vegetais e isto porque faço omeletes apenas com azeite.
Esta tem sido a trajetória do ensino superior em Portugal, trata-se de uma evolução nas antípodas do que defende e pretende Ashoka Mody para a Europa. Mas o mais grave ainda é que se trata de uma evolução que tem na sua base maioritariamente a mão dos socialistas, Sócrates e António Costa, e é pena que assim tenha sido, pois deveria ser este Partido o porta-estandarte de um ensino de qualidade e não de um ensino que se quer reduzir às “aprendizagens essenciais”, pelos vistos tanto no ensino secundário como no ensino superior.
Curiosamente, um dos meus livros de férias é Le grand scandale bancaire, de Vincenzo Imperatore, na tradução francesa publicada por Editions Herodios, em 2020. Neste livro pode-se ler:
“[Com a desregulação financeira] a formação do diretor bancário mudou radicalmente, ela também, no espaço de alguns meses. Antes, esta formação durava no mínimo 4 anos; só os melhores e os melhores preparados tecnicamente (salvo recomendações) eram escolhidos. Os cursos compreendiam uma parte teórica (sobre técnicas bancárias, direito comercial, direito das falências, análise de balanços e muitos outros assuntos mais). Este tipo de curso era depois seguido de uma longa formação prática. A mais insignificante função de direção, como a gestão de uma agência bancária, exigem uma formação rigorosa, teórica e prática, (e isto mesmo se fosse alguém recomendado). Com o desencadear do período das privatizações, o período de formação passou a não ser superior a uma semana e a progressão na carreira passou a ser sobretudo determinada na base da capacidade de cada quadro em vender e não nas competências técnicas do empregado ou do diretor”.
[Neste contexto] toda a atividade bancária acabou por se encontrar nas mãos de pessoas cujo único talento era a sua capacidade de seduzir os seus clientes ou os seus colaboradores. É assim que se passou da figura do administrador, do gestor, à figura do vendedor – porque o sistema está agora feito para que não haja mais necessidade de um profissional a saber descorticar as situações financeiras de uma empresa para determinar o crédito que lhes poderá ser atribuído, (…)
Para bem perceber a profundidade da mudança, basta relembrar as práticas do crédito antes das privatizações. Nesses tempos, analisavam-se os balanços no interior de cada agência bancária. Depois discutia-se com o cliente, discutiam-se os números, avaliava-se os ativos, os rendimentos, a liquidez, a situação económica geral, o peso do setor de atividade na qual opera a respetiva empresa. E cada diretor era responsável pelas suas opções.
Hoje, no novo sistema, basta-nos ter os números do balanço num sistema central que funciona segundo algoritmos precisos: mecanismo perfeitamente rodado, que reduz os riscos e ao mesmo tempo liberta o diretor de todo o seu poder discricionário!” [Em suma ninguém é responsável, a menos que consideremos que o algoritmo é humanamente alguém, é a lição que daqui se pode tirar.]
No intervalo de alguns meses, o sistema radicalizou-se ainda mais: o banco, a partir da sua sede, fixa as linhas de crédito e fornece a cada diretor de agência uma lista das pessoas e das empresas instaladas no seu setor e consideradas como “sólidas”, a partir de uma análise prévia limitada a alguns aspetos quantitativos, números do balanço, base de dados, etc. e também qualitativos, mas estes mais formais, mais limitados (taxa de sinistralidade, sector de atividade de empresa). A esta forma de atuar intitulava-se “uma solução segura”. Fim de citação
Como se vê com esta evolução do sistema bancário em Itália, gerada ou imposta pelos esquemas de liberalização dos mercados, temos uma evolução no plano do seu funcionamento em nada diferente da que a um outro nível colocamos acima sobre o ensino em Portugal e na Europa: reduzi-lo às aprendizagens essenciais.
2. O terrível enquadramento dos objetivos exigidos aos docentes
Sobre este tema já muito escrevemos pelo que não nos vamos aqui repetir. Os docentes hoje vivem entre dois muros, o muro do trabalho burocrático e o muro dos ratings estabelecidos a partir das suas publicações e estas definem 80% da sua classificação. Dito de outra maneira, a sua carreira depende desta corrida à publicação. Ora, se entendermos que um artigo de qualidade que seja de importância teórica representa mais de 6 meses de trabalho, questionamo-nos então como é possível haver muitos docentes com mais de 100 artigos publicados! Só vejo uma explicação, são trabalhos puramente empíricos feitos a computador em que a arte do artista é a hipótese de partida e o resto divide-se em trabalho do hardware, a maior parte e, por fim, a tradução feita pelo autor, um humano, dos resultados apresentados pelo programa e em linguagem supostamente científica. Dê-se, em economia, uma olhadela por amostragem recolhida das centenas de trabalhos deste tipo publicados num só ano recente e identifique-se aí qual a contribuição teórica dos trabalhos para o avanço da economia como ciência.
Para trabalhos deste tipo, trabalhos de hardware completados depois pela mão humana, não são necessários livros como os de Ashoka Mody e encontramos aqui, nesta perversão do sistema, uma das explicações porque é que o livro não existe nas prateleiras das bibliotecas de Ciências Sociais. Não precisam de o ler para o tipo de trabalhos que são feitos.
Note-se que me estou a referir aos docentes que vencem a batalha do publicar, publicar e assim vão subindo na carreira. São os ganhadores do sistema; mas temos também os outros, os docentes que levam mais de 6 meses para publicar um artigo que exija basicamente muito estudo, muita informação, muita articulação, muita coisa a descodificar teórica e empiricamente, os que em termos de progressão na carreira são os perdedores do sistema. Estes são ainda o suporte do sistema, são eles que o fazem verdadeiramente funcionar mantendo zonas de qualidade face às condições adversas em que funcionam. Mas um curso de qualidade não se faz apenas de manchas de qualidade porque, como nos diz Gresham, a má moeda acaba sempre por substituir a boa moeda. Estes professores, os perdedores na progressão das carreiras, acabam sempre por ser vencidos num sistema constituído para os vencer. Assim mesmo.
Resta-nos falar da terceira entorse do sistema, dos alunos que temos ou pretendemos ter.
(continua)
2 Comments