Entre a força assassina de um Golias (a Alemanha) e a rectidão moral de um David (a Grécia de Syriza)… – Syriza e a indemnização da guerra da França com a Prússia em 1871-73  (parte 6). Por Michael Pettis

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Syriza e a indemnização da guerra da França com a Prússia em 1871-73  (parte 6).

Por Michael Pettis, 4 de fevereiro de 2015  pettis_color_medium

Seleção e tradução por Júlio Marques Mota

Reedição revista do artigo publicado na Viagem dos Argonautas em 28 de fevereiro de 2015 https://aviagemdosargonautas.net/2015/02/28/entre-a-forca-assassina-de-um-golias-a-alemanha-e-a-rectidao-moral-de-um-david-a-grecia-de-syriza-syriza-e-a-indemnizacao-da-guerra-da-franca-com-a-prussia-em-1871-73-por-micha-5/

(conclusão)

Parte 6 – Quem está a lutar contra quem?

Por outras palavras, não estou a rejeitar a afirmação de que “a Espanha” agiu de forma irresponsável, ou não estou a colocar a culpa apenas na irresponsabilidade “alemã”.

Mas é também absolutamente errada a posição assumida por Volker Kauder, líder interparlamentar do Partido Democrata Cristão da chanceler alemã, Angela Merkel, ao dizer, de acordo com um artigo publicado na Bloomberg da semana passada, que “a Alemanha não tem qualquer responsabilidade pelo que aconteceu na Grécia. O novo primeiro-ministro tem de reconhecer isso.” Houve de facto muitos comportamentos irresponsáveis de ambos os lados, período durante o qual a riqueza foi transferida dos trabalhadores de ambos os países para criar o boom, e para absorver a explosão subsequente, e a riqueza será transferida, de novo, das famílias da classe média de ambos os países para limpar o desastre total que é o montante da dívida daí resultante.

Dito de outro modo, não há virtude ou vício nacional aqui, e não há nenhuma razão para que a crise europeia faça cair o sistema nas mãos da extrema-direita ou dos extremismos nacionalistas. A crise financeira na Europa, como todas as crises financeiras, é em última análise, uma luta para decidir sobre quem vão recair os custos do ajustamento, ou sobre os trabalhadores e aforradores da classe média ou sobre os banqueiros, donos dos ativos reais e financeiros e a elite empresarial. Em virtude de os grandes partidos se recusarem a reconhecer a natureza deste processo de distribuição dos custos de ajustamento e terem transformado a situação numa luta entre a Alemanha credora, por um lado, e os países europeus periféricos endividados por outro lado, eu era capaz de fazer em 2010-11 uma das previsões mais fáceis que já fiz na minha carreira – quaisquer que fossem os partidos extremistas, de direita ou de esquerda, quem pela primeira vez tomou a ofensiva contra a Alemanha, contra os banqueiros e os burocratas monetaristas, apareceria com popularidade eleitoral e acabaria por reformular o debate, foi o que então afirmei.

É por isso que a questão do perdão da dívida deve ser reformulada pelos partidos centristas, em primeiro lugar. Duas premissas são fundamentais para o argumento de que a Espanha (ou a Grécia, ou qualquer outro país) tem a obrigação moral de reembolsar integralmente a sua dívida para com a Alemanha. A primeira pressupõe que é “a Espanha” que pediu o dinheiro emprestado à “Alemanha”, e que há uma obrigação coletiva por parte da Espanha em reembolsar coletivamente a Alemanha. A segunda premissa é a de que a Espanha tinha uma possibilidade de escolha no que poderia fazer com o dinheiro alemão que entrou no país e que, por isso, deve ser considerada responsável pelo facto de que os dinheiros tão duramente aforrados pelos alemães foram mal utilizados pelos espanhóis.

A primeira hipótese é, penso eu, facilmente eliminável. A Alemanha exportou capital, porque reprimiu o crescimento dos salários, Berlim garantiu os lucros elevados e o baixo consumo, o que forçou as suas taxas de poupança nacional. Em vez de utilizar estas poupanças para investir no aumento da produtividade dos trabalhadores alemães (na verdade, o investimento doméstico diminuiu), este foi oferecido ou para financiar o consumo alemão a altas taxas de juros reais (e foram poucos os tomadores de empréstimos), ou, através dos bancos alemães e espanhóis, este capital foi oferecido a outras famílias europeias para o seu consumo ou a outras empresas europeias para poderem investir. As ofertas foram retomadas de maneiras diferentes por diferentes países. Nos países onde as taxas de juros reais oferecidas eram muito baixas ou mesmo negativas, os empréstimos foram mais amplamente concedidos do que em países onde as taxas de juros reais eram muito mais elevadas. Agora, atribuir essa diferença às preferências culturais, em vez de a atribuir à dinâmica do mercado, não faz muito sentido.

O que começou inicialmente de modo lento, rapidamente se acelerou e, mais uma vez, por razões de dinâmica do mercado. Como o enorme afluxo de capitais a Espanha estimulou o mercado de e o do imobiliário, algumas famílias espanholas, sentindo-se mais ricas, com mais património, passaram a não ter problemas em contrair empréstimos para aumentar o seu consumo, e muitas famílias e empresas espanholas contraíram empréstimos para aquisição de bens de raiz. No frenesim consumista subsequente, os padrões de concessão de crédito entraram em colapso, com os bancos espanhóis e alemães a lutarem para ganhar quotas de mercado, e com o otimismo a aumentar fortemente, o consumo cresceu fortemente e atingiu níveis insustentáveis até que, finalmente, a Espanha foi tão para além dos limites que entrou em colapso. A mesma história pode ser contada noutros lugares. Na verdade, isto foi igualmente o que aconteceu na Alemanha após a indemnização francesa.

Quanto à segunda hipótese, a de que a Espanha tinha outras escolhas, esta hipótese deve ser rapidamente rejeitada. Claramente, os agregados familiares espanhóis e os empresários espanhóis, em geral e globalmente, comportaram-se, retrospetivamente, com uma falta de cuidado e de prudência fortemente surpreendente. Mas poderiam ter feito de outra maneira — tiveram alguma hipótese de escolha? Quase certamente que não, não tiveram outra escolha. A Alemanha também não a teve quando recebeu a indemnização francesa, e eu não penso que haja muitos, se é que os há, exemplos de países que tenham conseguido absorver de um modo produtivo entradas tão maciças de meios de financiamento. Em todos os casos de que me lembro, as entradas maciças de fundos foram sempre acompanhadas por bolhas especulativas e por crises financeiras. .Mesmo os EUA no século XIX – precisaram urgentemente de capital estrangeiro para financiar uma enorme quantidade de investimentos produtivos que não poderiam ser financiados com poupança interna, tornando-se este pais no melhor candidato possível para receber enormes entradas de capitais estrangeiros — não foram capazes de absorver tão enormes entradas rápidas de capitais estrangeiros sem ver a criação de bolhas, de escândalos com investimentos e crises financeiras.

É razoável insistir em que o fracasso da Espanha para escolher um caminho diferente que nenhum outro país na história parece alguma vez ter escolhido, indica uma maior irresponsabilidade por parte dos mutuários do que dos credores? Tendo em conta que há sobre esta questão um leque muito diversificado de pontos de vista entre os indivíduos e as empresas espanholas sobre as perspetivas para o futuro, um mix de otimistas e pessimistas, níveis diversos de sofisticação financeira, pessoalmente penso que seria historicamente sem precedentes, se pelo menos algumas entidades espanholas não tivessem reagido de forma tão estúpida como o fizeram às ofertas agressivas de crédito extremamente barato, especialmente, porque este crédito barato tinha sido colocado no boom imobiliário.

Em resumo, penso existirem vários pontos que aqueles que, como nós, querem que a “Europa” sobreviva, devem ter presentes:

  1. A crise do euro é uma crise da Europa, e não dos países europeus. Não é um conflito entre a Alemanha e Espanha (e eu uso esses dois países para representar todos os países europeus, os que estão de um lado e do outro do boom) sobre quem deve ser considerado irresponsável e, por isso, deveria absorver os enormes custos de quase uma década de má gestão. Houve muitos comportamentos irresponsáveis em todos os países e é absurdo pensar que, se os bancos alemães e espanhóis estavam a aplicar quantidades quase ilimitadas de dinheiro nos países com taxas de juros reais extremamente baixas ou negativas, especialmente quando estas entradas iniciais tinham ultrapassado, e de longe, todos os limites nos mercados bolsistas e de bens de raiz, criando-se e dinamizando verdadeiros booms na bolsa e no imobiliário, haveria alguma possibilidade de que esses países pudessem responder de forma diferente da que responderam os outros países na história, incluindo a Alemanha na década de 1870 e na década de 1920, sob condições semelhantes.
  2. Os verdadeiros “perdedores” neste sistema até agora têm sido os trabalhadores alemães e espanhóis e, no futuro, serão os aforradores das classes médias alemã e espanhola e os contribuintes, claro está, na medida em que os bancos europeus sejam direta ou indiretamente resgatados. Os vencedores foram os bancos, os proprietários de ativos e os grandes empresários, principalmente na Alemanha, cujos lucros foram muito mais elevados durante a última década do que seriam se as coisas tivessem corrido de outra maneira.
  3. De facto, a atual crise europeia é desagradavelmente semelhante à de quase todas as crises dos mercados cambiais (divisas) e das dívidas públicas na história moderna, na medida em que colocam os interesses dos trabalhadores e dos pequenos produtores contra os interesses dos banqueiros. Os primeiros desejam salários mais elevados e um rápido crescimento económico. Os banqueiros pretendem proteger o valor da moeda e salvaguardar o carácter sagrado da dívida soberana.
  4. Eu não sei o suficiente para dizer com segurança qual dos lados está certo. Houve casos na história em que os banqueiros provavelmente estavam certos e houve casos em que os trabalhadores estavam provavelmente cheios de razão. Posso dizer, no entanto, que os precedentes históricos sugerem duas coisas muito óbvias. Em primeiro lugar, enquanto a Espanha sofrer com o peso atual da sua dívida, não importa quão inteligentemente e com que força aplique as reformas económicas. A Espanha não será capaz de crescer no quadro desta dívida e terá que escolher entre dois caminhos. Um dos caminhos envolve muitos, muitos mais anos de inferno económico, com as famílias normais a serem lentamente forçadas a absorver os custos da dívida – às vezes de forma explícita, mas geralmente de forma implícita sob a forma de repressão financeira, de desemprego e de monetarização da dívida. O outro caminho é o de uma resolução rápida da dívida, através da sua reestruturação acompanhada de um perdão parcial através de um processo disruptivo, mas curto, após o qual o crescimento voltará e quase certamente com grande vigor.
  5. Em segundo lugar, é da responsabilidade dos principais partidos do centro do espectro político reconhecerem explicitamente as opções a tomar. Se o não fizerem, serão os partidos extremistas, de direita ou de esquerda, que assumirão o controle do debate, e converterão o que é um conflito entre sectores económicos diferentes ou num conflito entre nações ou num conflito de classes. Se estes vencerem, eles irão determinar e declarar o fim da Grande experiência que é o projeto da União Económica e Monetária.

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Deixo os meus leitores com três perguntas e espero que as possamos discutir na secção dos comentários:

  1. Se uma grande quantidade de capital, igual digamos a um valor entre 10 e 30% do PIB anual de um país, é forçosamente distribuída por um enorme grupo de entidades dentro do país, num curto período de tempo, e se a única maneira através da qual este capital é distribuído é pela via de uma grande variedade de bancos, com enviesamentos tais que quanto mais otimista e irresponsável for o banco , mais elevados serão os lucros e quanto mais otimistas e irresponsáveis forem os mutuários, mais estes recebem como empréstimos, tem sentido referirmo-nos a um e a outro lado como agentes que tiveram um comportamento “irresponsável”, e, se assim for, a qual lado? Isto parece uma questão muito carregada, muito densa? Se assim for, como pode ela ser reformulada de forma menos carregada?
  2. Tem havido muitos casos de grande reciclagem de capital na história – apenas nos últimos 100 anos, posso recordar a reciclagem do excedente comercial dos EUA para a Alemanha e outros países na década de 1920, na reciclagem de petrodólares para a América Latina na década de 1970, e na reciclagem para os EUA do excedente comercial japonês na década de 1980 e o excedente comercial da China na década de 2000. Todas elas foram acompanhadas no país beneficiário por bolhas nos mercados de ações, de obrigações e também no do imobiliário, assim como foram acompanhadas de sobre-consumo e de desperdício de investimentos. Terá havido casos de grande reciclagem de capital que não tenham terminado em lágrimas para os paraísos de destino? Se os houve, em que é que estes países eram diferentes?
  3. Que diriam sobre o outro lado da reciclagem? Na maioria dos casos o país que faz a reciclagem ficou igualmente sujeito à realidade das bolhas e da dívida em alta. Houve casos que igualmente não acabaram em situação de lágrimas e, em caso afirmativo, em que é que eles eram diferentes?

 

Texto original em

http://carnegieendowment.org/chinafinancialmarkets/58983 Logo Michael pettis

 

 

 

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