Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado – Uma exposição e uma análise crítica. Parte I – A finança básica hoje: 16. França – Lei de separação e regulação das atividades bancárias – Análise do projeto entregue pelo governo francês e propostas de alterações em janeiro de 2013 (1ª parte), por Finance Watch

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Parte I – O básico na finança de hoje

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Agulhagem de linhas ferroviárias, Shutterstock.

16. França – Lei de separação e regulação das atividades bancárias – Análise do projeto entregue pelo governo francês e propostas de alterações em janeiro de 2013 (1ª parte).

 

 

logo finance watch Por Finance Watch, janeiro de 2013.

(1ª parte)

Índice

  1. Introdução
  2. Resumo dos principais pontos
  3. Estudo de impacto
  4. Justificação das alterações
  5. Alterações propostas por Finance Watch

1.Introdução

Finance Watch coloca a análise contida no presente documento no contexto dos objetivos fixados pelo Governo para este projeto de lei. Estes objetivos, tal como foi expresso pelo Ministro da Economia e das Finanças no preâmbulo do projeto, são os seguintes:

  1. “Colocar a finança ao serviço da economia, e não ao serviço de si própria”.
  2. “Alterar profundamente o sector, constituir uma referência na Europa e refazer a nossa paisagem financeira para os 20 próximos anos, contra a especulação e pelo financiamento da economia real”.
  3. Sem “estar a invocar como pretexto o peso da finança e a complexidade dos seus desafios, para nos adaptarmos às insuficiências do sector”.
  4. Proteger os depósitos dos aforradores mas também dos contribuintes, virando firmemente a finança para a economia real.

Estes objetivos parecem-nos colocar a ambição do governo francês a um nível adequado tendo em vista os desafios colocados. Por conseguinte, Finance Watch acolheu com entusiasmo a vontade do governo de regulamentar o sector bancário em França, tanto mais que o país conta com algumas das instituições bancárias mais importantes ao nível europeu e mundial. [1]

A razão principal pela qual se põe a questão da separação das atividades bancárias de crédito e de depósito por um lado, e de intervenção sobre os mercados financeiros por outro lado, é que a mistura destas atividades numa mesma organização (modelo de banco universal) cria fortes distorções:

  • os depósitos da clientela são expostos aos riscos assumidos no âmbito das atividades de mercado;
  • ao mesmo tempo, o Estado (ou seja, o contribuinte) presta uma garantia explícita à atividade de depósitos e uma garantia implícita às atividades de mercado;
  • as atividades de mercado vêem os seus volumes artificialmente aumentados graças aos depósitos da clientela: com efeito, a garantia implícita do Estado permite ao banco universal emprestar a um custo menor, o que leva a um desenvolvimento das atividades de mercado em proporções que perdem rapidamente qualquer relação com as necessidades reais da economia.

Por outras palavras, a separação eficaz das atividades de crédito e de depósitos de um lado, e das atividades de mercado de outro lado, é uma condição para atingir as metas expressas pelo Ministro.

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Neste caso, Finance Watch está convencido de que intitular o texto aqui discutido “lei da separação e regulação das atividades bancárias ” e simultaneamente afirmar o princípio de não colocar em causa o modelo de banco universal é uma contradição nos termos, porque a banca universal é definida precisamente como uma espécie de banco onde as atividades de crédito e depósitos de um lado e as atividades de mercado por outro não são separadas.
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O projeto de lei entende resolver esta contradição tomando como critério de separação a utilidade das atividades, sendo a utilidade definida pelo facto de que uma transação, qualquer que seja a sua natureza, deve ser realizada com um cliente. Este critério não poderá constituir o bom critério para definir uma separação das atividades porque a quase totalidade das operações dos bancos, incluindo as operações mais especulativas ou as mais desligadas da economia real, é realizada com clientes.

Assim, a montagem e a venda a um hedge fund sedeado nas ilhas Cayman de um “credit default swap“ (uma espécie de seguro) sobre dívida soberana, de um produto de especulação sobre matérias-primas agrícolas ou de um “carry trade” permitindo especular sobre as divisas são transações consideradas como úteis na aceção do projeto de lei. A razão é que este hedge fund é um cliente do banco.

Toda a atividade de produtos derivados que consiste para os bancos em assumirem riscos múltiplos e complexos (risco sobre o nível do mercado, risco de taxas de juro, risco de volatilidade, risco de correlação…) a fim de gerar um lucro devido à evolução das condições de mercado, é considerada como útil pelo projeto de lei pelo único facto que é realizada com contrapartes, batizadas clientes.

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A relação “cliente – utilidade – não separação” permite, por conseguinte, manter intactas as atividades e a estrutura dos bancos. In fine, esta distinção permite afirmar para a maior parte das operações bancárias: “dado que o banco as realiza é então útil nas as separar”.

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O caso dos produtos derivados será tanto mais importante a ter em conta no debate sobre a separação atividades bancária quanto o desenvolvimento desta atividade se realiza num ritmo claramente desligado da economia real.[2] O problema principal causado pelo sobredesenvolvimento da atividade de produtos derivados é duplo:

  • em primeiro lugar os produtos derivados, por toda a sua utilidade como instrumentos de cobertura de risco, são o veículo preferido da especulação devido à característica de efeito de alavancagem que têm. Tendo em conta os volumes consideráveis em causa, isto conduz a desviar o capital dos seus usos produtivos: os 5 a 7.000 mil milhões de dólares utilizados no mundo como “colaterais” para garantir o bom fim de operações de derivados na sua grande maioria com um fim especulativa não seriam mais úteis se fossem convertidos em investimento produtivos?
  • seguidamente os produtos derivados são o veículo essencial da interconexão do sistema financeiro. Ora, sabe-se que a fonte principal de fragilidade do sistema não está tanto ligada à resiliência individual das instituições bancárias como à interconexão do sistema.

O apoio público implícito à atividade de produtos derivados inerente ao modelo de banco universal (não separação das atividades de depósito e crédito das atividades de mercados especulativos) conduz, assim, ao paradoxo de um apoio público que alimenta o desenvolvimento de uma atividade que torna o sistema mais frágil e as crises bancárias muito mais violentas, o que representa pois um custo considerável para a coletividade. Só uma separação das atividades de produtos derivados dos bancos permite evitar este paradoxo.

Além disso, e para responder ao argumento largamente difundido pelos bancos universais segundo o qual uma separação das atividades bancárias seria nefasta para a economia real, recordamos que apenas 22% dos ativos bancários franceses são consagrados aos créditos às famílias e às empresas não-financeiras.[3] São os 78% restantes que conheceram um crescimento rápido (e nomeadamente a parte consagrada aos produtos derivados), bem superior ao crescimento das carteiras de crédito e da economia real. O tema da separação visa, por conseguinte, simplesmente não fazer que seja a sociedade a subvencionar o crescimento dos 78%, de que apenas uma pequena fração é consagrada à economia real. Separar não sendo suprimir, a separação das atividades de especulação não põe em causa estas atividades: a atividade de banco de mercado dos estabelecimentos franceses rivaliza ao nível mundial com a das instituições mais potentes e é capaz de suportar a concorrência estrangeira.

No que respeita à colocação da dívida pública e à injeção de liquidez aos investidores no mercado da dívida pública, não existe nenhuma razão pela qual um banco de mercado separado dos depósitos da clientela não estaria em condições de ter um mercado. Em especial, o financiamento desta atividade far-se-ia, numa sucursal separada como se faz hoje, essencialmente por meio de operações ditas de recompra (REPO) (“repurchase agreement” ou “repo”). O financiamento destas operações não poria nenhum problema numa sucursal separada pelo facto de que as obrigações emitidas pelo Estado são, pela sua natureza mesma, os ativos mais fáceis de refinanciar.

Em conclusão desta introdução e por todas as razões expostas acima, Finance Watch sugere que se o projeto de lei tem de continuar a afirmar a superioridade absoluta do modelo de banco universal, então que o título da lei “de separação das atividades bancárias” seja abandonado uma vez que constitui uma contradição nos termos nefasta à sua boa compreensão.

(continua)

Texto original ” Propositions d’amendements au projet de loi bancaire par Finance Watch”, http://www.finance-watch.org/presse/communiques-de-presse/348-recommandations-projet-loi-bancaire?lang=fr

 

Notas

[1] Recorde-se, entre as 14 instituições financeiras europeias que têm uma importância sistémica ao nível mundial, 4 são francesas.

[2] O volume total de produtos derivados existente (derivados negociados nos mercados de balcão e derivados cotados) foi multiplicado por sete em doze anos, atingindo hoje 700.000 mil milhões de dólares, ou seja, doze vezes o PIB mundial. No mesmo período, a economia mundial – medida pelo seu PIB – apenas duplicava.

[3] Fonte: relatório Liikanen, página 120.

 

 

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