Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte II – Compreender a alta finança
2. Compreender a finança nº 2 – Excluir os serviços financeiros do TTIP? (1ª parte)
Por Finance Watch, 2014
(1ª parte)
«As empresas vão obviamente entender-se entre si relativamente ao facto de que menos regulamentação seria bom para os seus lucros. Os negociadores dos acordos comerciais podem também ser convencidos disso e acreditarem nos efeitos positivos gerados por estes acordos de comércio. Mas haverá perdedores, e isso serão todos os outros, nós todos.»
Joseph E. Stiglitz, « The Wrong Side of Globalization », Blog du New York Times, 15 de março de 2014
ÍNDICE
PARTE 1: O b.a.-ba
Introdução
O que é um acordo comercial?
Qual é o objetivo da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento/ Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP).
TTIP e os serviços financeiros
O acesso aos mercados, uma questão de liberalização?
Um quadro de cooperação em matéria de regulamentação
A proteção dos investidores e o mecanismo de regulamentação dos diferendos entre Estados e investidores
PARTE 2: O debate e a posição de Finance Watch
Será necessário verdadeiramente liberalizar ainda mais a finança?
“Não combaterão o medo com a ignorância”
Desmistificar as afirmações do lóbi financeiro
Qual a posição de Finance Watch ?
Conclusão
Finance Express: O essencial em quatro minutos: «Porque é que Finance Watch está preocupada com a parceria TTIP?» com Aline Fares de Finance Watch
PARTE 1: O b.a.-ba
Introdução
Este trabalho dá-nos informações-chave para se compreender a Parceria Transatlântica de Comércio e de Investimento (mais conhecida sob o seu nome inglês: Transatlantic Trade and Investment Partnership ou TTIP) em curso de negociação entre os Estados Unidos e a União Europeia.
A primeira parte deste trabalho intitula-se “o b.a. – ba” e dá-nos informações gerais sobre os acordos comerciais e as suas recentes evoluções, bem como algumas explicações mais específicas relativas a diferentes aspetos da TTIP, entre os quais por exemplo a definição de termos como “regras de acesso ao mercado”.
A segunda parte, “Debate”, explica porque é que o TTIP é assim tão importante para Finance Watch. Concentrar-nos-emos mais particularmente sobre a questão da inclusão dos serviços financeiros na TTIP.
Na nossa opinião uma tal inclusão pode limitar a capacidade dos Estados-Membros e da UE em regulamentarem a finança, correndo-se o risco de inconsistência ou pusilanimidade na regulamentação ligada nomeadamente ao facto de que os regulamentos poderiam ser contestados pelos investidores estrangeiros em detrimento dos cidadãos e contribuintes. Incluir os serviços financeiros no TTIP faria correr o risco também de levar a uma liberalização acrescida da finança com os riscos que hoje se conhecem bem assim como poderá levar a ainda maior crescimento do sector financeiro. Progredimos muito pouco em matéria de regulamentação financeira desde o início da crise e não podemos darmo-nos ao luxo de correr o risco de enfraquecer ainda mais as regras existentes.
O que é um acordo comercial?
De um modo geral, os acordos comerciais têm por fim estimular o comércio entre dois (ou mais) países através do estabelecimento de regras que facilitem o comércio entre esses mesmos países. O comércio pode ser facilitado principalmente através de dois mecanismos:
- A redução ou eliminação das barreiras tarifárias ao comércio, que são uma espécie de imposto sobre os bens e serviços que entram no país. Desta forma, os países participantes no acordo podem negociar pagar taxas menores de entrada dos produtos em cada um dos países.
- A redução ou eliminação das barreiras não-tarifárias (BNT) ao comércio, que são as regras, as normas e todos os outros tipos de barreiras ao livre comércio que estão fora do âmbito das barreiras tarifárias. Por exemplo, proibições de importação e os padrões sanitários são considerados barreiras comerciais não-tarifárias.
Os países signatários desses acordos comerciais podem estabelecer tarifas externas comuns em relação a outros países: a União Europeia é o exemplo clássico, com o seu mercado comum e a sua Pauta Aduaneira Comum decidida a nível europeu.
Hoje, existem diferentes tipos de acordos comerciais com variantes quanto à profundidade da integração e ao seu âmbito (acordo bilateral, multilateral…), como mostra a tabela abaixo. A parceria TTIP pertence à categoria “Acordo de Livre Comércio (TLC ou FTA em inglês)”.
Tabela C.1: Integração pouco profunda versus integração profunda |
Nível de integração | Tipo de Acordo Comercial Preferencial (PTA) | Características | Exemplo |
Integração pouco profunda
↓↓↓
Integração profunda |
Acordo de livre comércio (ALC) | Os membros do acordo liberalizam o comércio entre si mas mantêm independentes as suas tarifas aduaneiras. | EUA-Israel |
ALC +. | É um acordo de livre comércio que adicionalmente harmoniza para lá dos standards das tarifas aduaneiras. | NAFTA | |
União Aduaneira | Os seus membros liberalizam o comércio dentro da união e adotam tarifas externas comuns em relação ao resto do mundo | SACU | |
Mercado Comum | Estabelecimento de livre circulação dos fatores de produção, nomeadamente trabalho e capital. | UE | |
União Monetária | Estabelecimento de uma moeda comum e integração total da política monetária e cambial. | Eurozona | |
União fiscal e orçamental | Estabelecimento de uma política fiscal e orçamental comum | EUA | |
Nota: o grau de integração dos acordos pode apresentar sobre posições em determinadas circunstâncias. |
Fonte: The WTO and preferential trade agreements: From co-existence to coherence, OMC, p.110.
Em 1947, muitas nações tentaram estabelecer um sistema de comércio multilateral através do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), substituído em 1995 pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem atualmente 160 países membros. De acordo com o princípio de nação mais favorecida, as condições acordadas bilateralmente entre dois membros da OMC devem ser oferecidas a todos os outros membros da OMC. O Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS) é um tratado da OMC e entrou em vigor em janeiro de 1995. O tratado foi criado para estender o sistema multilateral de comércio ao setor dos serviços, adaptando para este setor o sistema de comércio aplicado ao setor de bens estabelecido pelo GATT. Todos os membros da OMC são signatários do GATS. O princípio da nação mais favorecida aplica-se igualmente no seio do GATS.
No entanto, paralelamente a estes mecanismos multilaterais, podem também ser concluídos fora da OMC acordos comerciais preferenciais. Estes acordos preferenciais só beneficiam os países que os assinam, e não todos os membros da OMC como o quereria a regra da nação mais favorecida. Estes acordos são chamados bilaterais quando envolvem apenas dois países, ‘regionais’ quando envolvem mais de dois países parceiros.
O número de acordos comerciais preferenciais (fora da OMC, portanto) aumentou enormemente ao longo da última década:
Esta evolução é atribuída ao facto de que a OMC não conseguiu continuar o seu programa baseado nos princípios ligados à sua criação, em 1995. Desde o início, a Organização Mundial do Comércio tem despertado forte oposição dos movimentos anti-globalização, que se têm manifestado através de inúmeros protestos por todo o mundo. A contestação mais conhecida ocorreu em Seattle em 1999 e em Génova em 2001. A prática da OMC é a de que as decisões sejam tomadas por consenso. Isto permitiu que os países em desenvolvimento, e estes são a maioria na OMC, bloqueassem certas mudanças desejadas por países como os EUA e a Europa. Estes decidiram avançar fora da OMC, e é assim que eles usaram os referidos acordos preferenciais para alcançarem os seus objetivos.
A parceria TTIP é representativa desta evolução, pois é negociada fora da OMC e vai mais longe do que um simples acordo de comércio tradicional.
(continua)
Texto original de Finance Watch, “Comprendre la finance #2 – Exclure les services financiers du TTIP?” em http://www.finance-watch.org/informer/comprendre-la-finance/927-comprendre-la-finance-2#ttip-purpose