
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte III – A finança ao serviço da sociedade e não a sociedade ao serviço da finança.
3. Investir não é andar a apostar (7ª parte)
Colocando os mercados financeiros ao serviço da sociedade. Tomada de posição sobre MiFID 2/MiFIR, a Diretiva relativa aos mercados de instrumentos financeiros
Por Finance Watch, 24 de abril 2012
Autor: Benoît Lallemand. Editores: Thierry Philipponnat, Greg Ford, Emily McCaffrey
(7ª parte)
Os Mercados financeiros precisam de ser ‘ajudados’ para cumprirem as suas funções essenciais para a economia real. Sem esse enquadramento, a próxima crise está ao virar da esquina |
II. Os mercados de hoje e o impacto da MiFID 1
Nesta seção vamos analisar as bases em que assenta a MiFID e o que está a tentar alcançar, e depois o estado atual dos mercados financeiros a partir de uma perspetiva da especulação versus investimento na linha do que se explicou anteriormente.
A. O contexto da MiFID
A percursora da MiFID 1, a ISD, e a regra da concentração
A MiFID 1 é a filha da diretriz orientadora de serviços de investimento (ISD), estabelecida em 1993. A Diretiva ISD era parte da agenda da Comissão sobre o Mercado Interno para criar um mercado único europeu com base em mercados abertos, liberalizados. A proposta inicial da Comissão (1989) centrou-se sobre os intermediários financeiros estabelecendo padrões reguladores comuns para dinamizar a concorrência através dos Estados-membros na área de serviços financeiros. Como a proposta não continha nenhumas disposições sobre a execução das transações, era óbvio que as bolsas de valores nacionais viriam rapidamente a ficar sob uma severa pressão competitiva enquanto os acionistas e as empresas de investimento se tornaram livres para transacionarem fora dos seus mercados internos.
Isto desencadeou uma feroz oposição de diversos Estados-membros. Os anos 80 tinham visto o surgimento de novas plataformas eletrónicas baseadas na utilização intensa de ecrãs, operando em mercados de balcão [mercados OTC], menos organizados e na verdade menos regulados. Estas plataformas estavam a começar a absorver a liquidez colocando-a fora de diversos mercados de valores nacionais. Isto explica em parte a introdução do conceito chave do “mercado regulado” (ligado às exigências específicas de transparência e de integridade) e da regra da concentração [24] no ISD:
A regra da concentração ou da centralização refere-se à possibilidade de um Estado-membro poder exigir que as transações financeiras sejam executadas num mercado regulado, assegurando desse modo alguma centralização das transações e a liquidez do mercado… O efeito da regra é obviamente proteger os mercados regulados da concorrência de bolsas não reguladas ou de transações fora de bolsa, os chamados mercados de balcão. Contudo, formulando a regra como opcional para os Estados-membros, e permitindo aos investidores renunciar à exigência da centralização, o efeito anti concorrência da regra da concentração poderia ser bem menos importante do que muitos recearam. [25]
Plataformas de negociação centralizadas ou fragmentadas?
Mas o conceito de mercados regulados e a regra da concentração (ou da centralização) não dizem respeito apenas a questões ligadas à concorrência. Mais importante, como se mostra pelo debate polarizado que ocorreu em torno da adoção da ISD, a discussão assenta em visões diferentes, conflituais, sobre as estruturas dos mercados de títulos.
Alguns países quiseram manter e proteger os seus mercados centralizados, enquanto outros favoreciam uma abordagem pela fragmentação onde as plataformas de negociação poderiam definir as suas próprias regras e em que os participantes teriam a liberdade de escolher onde executar as suas transações. Este debate está ainda muito presente na revisão da MiFID – apesar da MiFID 1 ter tomado claramente a opção de favorecer a segunda metodologia, a da fragmentação, com a abolição da regra da concentração.
B. A lógica da MiFID
A ISD estabeleceu a primeira camada de um mercado de capital europeu, mas o passaporte único que criou para as empresas de investimento continha demasiadas isenções nacionais para ser muito eficaz.
A agenda de Lisboa visava, portanto, desenvolver mercados financeiros europeus como um complemento do financiamento bancário, o que levou a desencadear, em 2000, uma revisão da ISD a que mais tarde se chamaria MiFID 1.
O diagnóstico
O diagnóstico em que se baseou a MiFID 1 foi de que a economia da UE (o paciente) estava a obter insuficiente financiamento dos mercados financeiros (a doença) devido ao alto custo das transações e, em particular, às comissões cobradas pelos operadores dos mercadores locais. Tais custos, segundo a teoria, bloqueavam os mercados secundários o que, por sua vez, prejudicava a liquidez do mercado. Sabemos que, em teoria, os mercados secundários mais “líquidos” atraem mais investidores (inclusive para os mercados primários) e isso resulta em menor custo de capital para os emitentes.
O medicamento
O medicamento escolhido para tratar a doença foi tentar reduzir o custo da negociação, promovendo a concorrência entre os locais de negociação existentes e as novas plataformas eletrónicas inovadoras. Isso significava abolir as “regras de concentração” nacionais que forçavam todas as transações domésticas a bolsas preexistentes e criar um “mercado para mercados” (ver adiante Caixa 3). Além de reduzir os custos, este medicamento gradualmente daria origem a locais ou plataformas pan-europeias (concorrência que levará à consolidação) e a uma menor liquidez “nacionalmente fragmentada”.
Uma lógica discutível
No entanto, fundamentalmente o diagnóstico sobre o baixo financiamento da economia europeia através dos mercados financeiros poderia ter sido diferente e poderia ter levado à utilização de outro conjunto de medicamentos.
- Em primeiro lugar, um esforço para estimular os mercados de capitais para financiarem as empresas europeias devia incluir uma avaliação do funcionamento dos mercados primários, onde essas empresas efetivamente obtêm capital.
- Em segundo lugar, mesmo que se considere que uma maior rotação ou volume de negócios corresponde a um aumento da liquidez (o que é discutível, como argumentámos acima) e que, por sua vez, esse tipo de liquidez reduz o custo do capital para o emitente (novamente, é um pressuposto), ainda assim está longe de ser óbvio que uma menor rotação ou volume de negócios se deva essencialmente ao custo das transações.
- Finalmente, mesmo se o custo das transações fosse um problema, a parcela dos custos ligados às plataformas ou locais de negociação é muito pequena em comparação com os outros custos de utilização dos mercados. Quando os custos da plataforma de negociação são apenas 4,5% dos custos globais de negociação e de manutenção, parece improvável que eles sejam o fator dominante no comportamento dos participantes.
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Os efeitos colaterais
Previa-se que o medicamento teria um efeito colateral negativo: a fragmentação da liquidez por mais locais de negociação. Na verdade, de acordo com o banco de dados da ESMA, em abril de 2012 havia 146 Sistemas de Negociação Multilaterais (MTFs) [28], 93 Mercados Regulamentados (RMs) e 13 Internalizadores Sistemáticos (SIs) [29] a funcionarem na Europa. [30]
Para compensar isso, foram introduzidos requisitos de transparência pré e pós-negociação, permitindo aos investidores manter uma visão sobre preços e transações. A regra da “melhor execução” também foi implementada, forçando as empresas de investimento a oferecer aos seus clientes o melhor preço no mercado. Note-se que o Reg NMS [31], optando pelo mesmo “mercado para mercados”, foi mais longe do que a MiFID para compensar a fragmentação: obrigou à consolidação das cotações para determinar uma melhor oferta e procura a nível nacional e obrigou as empresas de negociação financeira e as bolsas a encaminhar as ordens dos clientes para o local que oferecem o melhor preço quando não podem ser eles mesmos a praticá-los.
A MiFID também teve como objetivo fortalecer as regras de proteção do investidor para compensar o crescente alcance e complexidade dos produtos financeiros que são oferecidos.
(continua)
“Investing not betting”, disponível em http://www.finance-watch.org/press/press-releases/328-investing-not-betting-fw-position-paper/
Notas
[24] Nota de Tradutor. Como assinala a União Europeia num comunicado à imprensa: a diretiva revoga a chamada ‘regra de concentração’ (por outras palavras, os Estados-Membros já não podem exigir que as empresas de investimento encaminhem as suas ordens somente para as bolsas de valores). Isto significa que, em muitos Estados-Membros, as bolsas serão expostas à concorrência de sistemas de negociação multilaterais (MTF), estes largamente são uma plataforma de negociação de títulos, e de ‘internalizadores sistemáticos’, ou seja, bancos ou firmas de investimento que sistematicamente executam ordens de clientes internamente na própria conta (ao invés de as enviarem para as bolsas).
[25] Tison (1999).
[26] Fonte: Lagneau-Ymonet and Riva (a publicar). Ver também Hautcoeur, Lagneau-Ymonet and Riva (2010) e Lagneau-Ymonet and Riva (2012).
[27] A propósito, a eficiência económica e o desempenho não parecem ser resultados óbvios da desmutualização segundo estudos empíricos recentes (Serifsoy 2008; Morsy and Rwegasira 2010).
[28]Nota de Tradutor. Os MTF’s são sistemas de negociação multilateral que funcionam em espaços que permitem o confronto de ordens de compra e venda de instrumentos financeiros, de forma e com regras claras e não discricionárias.
[29] Nota de Tradutor. Internalizadores sistemáticos: são intermediários financeiros que executam ordens dos investidores contra a sua própria carteira de forma organizada e sistemática, em detrimento de o fazerem num mercado regulamentado ou através de um sistema de negociação multilateral.
[30] RMs, MTFs and SIs são as 3 principais categorias de plataformas de negociação definidas na MiFID. Para maior detalhe ver MiFIR artigo 2.
[31] Reg NMS é o equivalente nos EUA da MiFID 1 e foi implementada sensivelmente na mesma altura.