Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado: uma exposição e uma análise crítica Parte IV – A titularização como meio para continuar na trajetória da crise – 4. Dez anos depois – O pacote legislativo de 2017 sobre o sistema bancário: um passo à frente, dois passos atrás (7ª parte-conclusão). Por Christian M. Stiefmüller (Finance Watch)

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640
Jan Brueghel the Younger, Satire on Tulip Mania, c. 1640

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota 

Parte IV – A titularização como meio para continuar na trajetória da crise

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4. Dez anos depois – O pacote legislativo de 2017 sobre o sistema bancário: um passo à frente, dois passos atrás (7ª parte-conclusão).

 

 

 

Por Christian M. Stiefmüller, Analista

Publicado por Finance Watch, em junho de 2017

 

(7ª parte-conclusão)

C. Comentários sobre determinadas medidas

(…)

3. TLAC / MREL e outras modificações do regime de recuperação e resolução

Calibração TLAC e MREL

A Comissão propõe a introdução de um requisito mínimo harmonizado de MREL (Requisito Mínimo de Fundos Próprios e Responsabilidades Elegíveis) (também denominado “requisito MREL do Pilar 1) aplicável apenas aos G-SIBs, de acordo com o âmbito de aplicação da TLAC padrão (Capacidade de Absorção Total de Perdas) acordada pelo G20. Sob TLAC, um nível mínimo de capital e de passivos – 16% de ativos ponderados pelo risco (RWA) ou 6% da exposição total inicialmente, aumentando depois para 18% e 6,75% em 2022 – deve estar disponível para resolver e recapitalizar um banco numa situação de crise. Todos os outros bancos, incluindo D-SIBs, permanecem sob o regime MREL existente (“Pilar 2”), que não está sujeito a um nível mínimo obrigatório (59). Quanto ao regime de capital em questão, isso deixa a calibração do MREL para os bancos D‑SIBs em grande parte nas mãos das autoridades relevantes, neste caso nas mãos do Comité Único de Resolução ou da autoridade de resolução nacional. Finance Watch pensa que os D-SIBs também deviam estar sujeitos a um requisito mínimo harmonizado de “Pilar 1 MREL”.

Hierarquia dos credores, harmonização na insolvência

Estamos preocupados com a falta de progresso na harmonização das hierarquias dos credores nos Estados-Membros da UE. Este é um passo crítico para tornar a ferramenta de resgate interno credível e adequada. Observamos que grande parte da discussão atual sobre o resgate interno, a “partilha de encargos”, e MREL é ofuscada por conceções erradas quanto ao processo de resolução e sobre a mecânica legal e financeira do resgate interno como instrumento de garantia.

Em primeiro lugar, a discussão política não parece distinguir entre os conceitos de elegibilidade para resgate interno e de elegibilidade para MREL (ou TLAC). A intenção da diretiva BRRD, e de “TLAC Principles and Term Sheet” (60) do FSB-Financial Stability Board, é definir e quantificar categorias distintas de passivos que são não apenas adequados para resgate interno, mas que podem ser pagos com um alto grau de confiança sem interferir com os créditos de outros credores seniores não garantidos. Como os credores seniores não garantidos se classificam pari passu (simultaneamente), ou seja, têm o mesmo grau e direitos numa insolvência, é muito arriscado assumir que alguns deles podem ser utilizados no resgate interno de um banco, a insolvência, enquanto outros são poupados. O artigo 75 da diretiva BRRD estabelece explicitamente que os credores têm direito a uma compensação se sofrerem uma perda mais elevada sob a resolução do que sob uma insolvência e liquidação convencionais. O risco de um desafio legal bem-sucedido contra o plano de resolução por credores não garantidos é bastante elevado nessas circunstâncias e é suscetível de desencorajar as autoridades de resolução a continuarem com o resgate interno como opção de resolução. Este raciocínio também se reflete nas Seções 10-11 de “TLAC Principles and Term Sheet” (TLAC-Princípios e Lista de Condições), que exclui explicitamente de TLAC “quaisquer responsabilidades que, de acordo com as leis que regem a entidade emissora, sejam excluídas do resgate interno ou não possam ser reduzidas no seu valor nominal ou convertidas em ações pela autoridade de resolução relevante sem dar origem a um risco importante de contestação judicial bem sucedida ou reivindicações de compensação válidas”.

Em segundo lugar, a discussão está minada por uma conceção errada sobre o que constitui a “disciplina de mercado”. A “disciplina de mercado” não equivale a expor o máximo possível de credores ao risco de serem utilizados no resgate, na esperança de que colocá-los em risco aumentaria o nível de controlo e, possivelmente, de pressão sobre a gestão do banco. Como o termo indica, “disciplina de mercado” é exercida pelos mercados (de capital), ou seja, pelos investidores. Os fornecedores de bens e serviços do dia-a-dia, bens fundamentais ou não, não são agentes de “disciplina de mercado”. Ao contrário dos investidores em ações dos bancos ou em dívida sobre a banca eles não estão a fornecer capital para a atividade bancária em troca de um retorno financeiro. Há aqui uma relação bem diferente e, em contraste com os investidores em títulos negociáveis, eles não são capazes de pôr um fim a esta relação em qualquer momento pela venda das suas posições perante o banco. Por isso, não só é prudente evitar perturbações nas operações fundamentais e, portanto, críticas do banco, como também é equitativo estabelecer uma distinção muito clara entre os credores seniores financeiros e os credores seniores comerciais. Qualquer regime de subordinação, ou de uma nova categoria de valores mobiliários, deve, portanto, assegurar que os créditos dos credores financeiros sejam separados e tenham uma importância menor (estatuto inferior) em relação aos créditos comerciais, independentemente de estes últimos serem ou não qualificados como passivos excluídos.

Para que o instrumento resgate interno seja credível e praticável, as responsabilidades TLAC/MREL elegíveis devem ser limitadas aos ativos que podem servir como absorção de perdas sem desencadear riscos massivos de litígio. Não pode ser responsabilidade das autoridades de resolução assumir riscos sobre o estatuto jurídico dos créditos individuais, ou da categoria de créditos, sob as leis de insolvência dos Estados-Membros. É, em vez disso, da responsabilidade do legislador criar um quadro jurídico fiável a nível europeu.

A preferência geral dos depositantes é um passo na direção certa, pois contribui para separar os depositantes dos investidores e para canalizar as perdas para os investidores institucionais, que estão melhor posicionados para avaliar riscos, para corretamente avaliarem os instrumentos de dívida e, se necessário, absorverem essas perdas. Porém, isto não é suficiente, pois não trata de forma abrangente a questão dos créditos pari passu.

Consequentemente, os passivos elegíveis para TLAC / MREL precisam de ser subordinados aos credores seniores não garantidos (pari passu). A definição proposta de instrumentos elegíveis (novo Art. 72b/2/alínea d CRR) deve, portanto, ser reformulada e todas os ativos seniores não garantidos (pari passu) devem ser excluídas da elegibilidade para TLAC e MREL (novo Art. 72a/2 CRR) – mas não, para evitar dúvidas, da elegibilidade a ser resgatada no total, que é definida no art. 44/2 BRRD. As exceções do requisito de subordinação (novo Art. 72b Abs. 3-6 CRR), que se baseiam na Seção 11 de “TLAC Principles and Term Sheet”, também devem ser reconsideradas: é difícil ver como a inclusão de créditos que podem dar origem a “risco material relevante de um processo em tribunal bem-sucedido ou a exigências válidas de compensação” em caso de serem sujeitos a resgate interno, poderiam não ter também “um impacto material adverso sobre a resolubilidade da instituição “(novo Art. 72b / 3 / alínea c CRR).

 

A linha de orientação MREL e restrições sobre poderes discricionários

Em analogia com os estritos limites propostos sobre a capacidade dos supervisores de imporem requisitos adicionais de capital (Pilar 2, ver acima), a proposta visa estabelecer restrições semelhantes na calibração do MREL feita pelas autoridades de resolução (novo Art. 45c / 3 BRRD). A redação proposta impõe um limite ao MREL (“não deve exceder“) e vincula firmemente a avaliação da autoridade de resolução sobre os valores de absorção de perdas e recapitalização à calibração feita pela autoridade de supervisão do Pilar 2 (novo Art. 104a CRD). Além disso, a ABE deve ter o mandato de elaborar normas técnicas de regulamentação para restringir ainda mais os critérios gerais que regem a avaliação da autoridade de resolução do MREL (novo Art. 45c / 7 BRRD).

Em consonância com a proposta de introdução de P2G para os requisitos de capital próprio, a proposta introduz disposições análogas para MREL (Art. 45e BRRD). Tal como acontece com a calibração vinculativa de MREL, a autoridade de resolução seria efetivamente condicionada pelo julgamento da autoridade de supervisão (novo Art. 104b CRD).

As regras propostas provavelmente criarão uma hierarquia institucional onde a autoridade de resolução é efetivamente subordinada à autoridade de supervisão. Isto não é, na nossa opinião, nem compatível com os “Atributos-chave” de Comité de Estabilidade Financeira (FSB) (61) nem desejável do ponto de vista prático. A análise da autoridade de resolução é necessariamente diferente da autoridade de supervisão, uma vez que tem que trabalhar com o pressuposto de que uma instituição que fique aos seus cuidados irá falir ou já faliu mesmo, ou seja, que terá violado as redes de segurança que foram implementadas pela autoridade de supervisão. A visão da autoridade de resolução é diferente, também, e baseia-se principalmente no novo formato pós-resolução da instituição, que assenta no plano de resolução e provavelmente será muito diferente da forma de pré-resolução. As duas perspetivas não são conflituantes, mas complementares e, portanto, seria muito imprudente dar a uma qualquer delas precedência sobre a outra.

 

Recapitalização preventiva

Intencionalmente ou não, o drama contínuo em torno do proposto resgate financiado pelo Estado de uma série de bancos italianos em situação de falência (62) poderia ter um efeito de sinalização negativo duradouro e potencialmente enorme. Isso demonstra a que nível os governos ainda estão preparados para avançarem na lógica dos resgates dos bancos à custa dos contribuintes, se isso é visto como a ação politicamente expedita a ser feita. Os executivos dos bancos e os investidores tomarão este episódio como uma demonstração conclusiva de que eles ainda podem contar com o apoio dos governos, ou seja, que os governos obriguem os contribuintes a pagarem os resgates. “Demasiado grande para falir” é uma ideia que ainda está viva e bem viva, pelo menos na Europa. Para remover, de uma vez por todas, a tentação de que os decisores políticos descarreguem os destroços de bancos falidos nos ombros dos contribuintes, Finance Watch recomenda fortemente a exclusão da cláusula de “recapitalização preventiva” (Art. 32/4 BRRD) do pacote legislativo atual.

 

Instrumentos adicionais de capital de nível 1 (AT1) /Títulos Convertíveis Contingentes (CoCo) [NT2]

Defendemos anteriormente que os instrumentos elegíveis para resgate interno de perdas devem ser detidos por investidores profissionais, pois estes estão melhor posicionados para avaliar, para calcular preços e, em caso de necessidade de absorção de perdas, o risco. Onde até mesmo os investidores profissionais continuam a debater-se, a ter dúvidas, são os instrumentos AT1 (fundos próprios adicionais de nível 1). Esses instrumentos são mal projetados, mal compreendidos (63) e, atualmente, com preços muito otimistas. O episódio ocorrido em fevereiro de 2016, quando algumas emissões AT1 sofreram perdas, evidenciou a fragilidade desse mercado. A decisão de dar prioridade aos cupões AT1 em relação a outros títulos de Nível 1 (novo Art. 141/3 CRD), que não fazia parte do projeto original desses instrumentos, pode aliviar algumas preocupações dos investidores, mas não resolverá os problemas subjacentes. A má conceção do instrumento, em particular o fraco alinhamento dos incentivos entre os investidores de AT1 e outras partes interessadas, continua a atrair críticas de académicos e de profissionais da banca. (64)

Existe o risco deste mercado ter atraído um grande número de investidores à procura de rendimentos relativamente altos, sem que tenham feito uma apreciação completa das características de risco e de retorno desses instrumentos complexos. É, na nossa opinião, muito provável que esses instrumentos não desempenhem o papel pretendido em caso de crise, sobretudo como consequência da mal concebida priorização dos cupões AT1. Qualquer reação dos investidores, ou seja, da “disciplina de mercado”, é levada ao ponto em que o banco aciona o sinal de limite ” risco de falência ou falência”, ou seja, em que está já a entrar na resolução. O valor do instrumento como um sistema de alerta precoce que transmite sinais vindos do mercado foi largamente perdido no processo. Enquanto a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) emitiu uma nota de advertência aos investidores institucionais em julho de 2014 (65), a Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido (UK FCA) interveio de forma mais decisiva proibindo a venda desses valores mobiliários aos investidores de retalho (66). Tendo em vista os riscos associados, Finance Watch recomendaria fortemente uma proibição similar numa base pan-europeia.

 

Texto disponível em http://www.finance-watch.org/ifile/Publications/Reports/Finance-Watch-Policy-Brief-June-2017.pdf

 

Notas

[NT2] Os CoCos são títulos conversíveis contingentes, ou seja, títulos de dívida do banco que poderão ser transformados em ações quando o capital do banco cai abaixo de um nível determinado, revelando que a instituição estará em vias de insolvência. Em outras palavras, os CoCos são títulos convencionais até ao momento em que ocorrer (se ocorrer) um evento que indique a necessidade de capitalização do banco para fazer frente a perdas que coloquem a sua solvência em risco.

(59) Finance Watch, Policy Brief: TLAC/MREL: Making Failure Possible?, 01 March 2016; http://www.finance-watch.org/our-work/publications/1213-policy-brief-tlac-mrel

(60) Financial Stability Board, Principles on Loss-absorbing and Recapitalisation Capacity of G SIBs in Resolution: TLAC Principles and Term Sheet, 09 November 2015; http://www.fsb.org/wp-content/uploads/TLAC-Principles-andTerm-Sheet-for-publication-final.pdf

(61) Financial Stability Board, Key Attributes of Effective Resolution Regimes for Financial Institutions, 15 October 2014; http://www.fsb.org/wp-content/uploads/r_141015.pdf

(62) Stiefmueller, Christian M., Failing or Likely to Fail?, Finance Watch ‘Hot Topics’,13 January 2017; http://www.finance-watch.org/hot-topics/blog/1316-failing-or-likely-to-fail; Finance Watch, Policy Brief: Should Precautionary Recapitalisations Make Taxpayers Nervous?, 08 October 2014; http://www.finance-watch.org/our-work/publications/942-fw-policy-brief-october-2014

(63) Deutsche Co-CEO says CoCos are “bad product”, Financial Times, 16 March 2016; www.ft.com/fastft/2016/03/16/deutsche-co-ceo-says-cocos-are-bad-product/

(64) McCunn, Ayowande, Forbearance Incentives: Undermining the Distinction between Going- and Gone-concern Capital, University of Oxford / Oxford-Man Institute, 05 April 2016; http://www.oxford-man.ox.ac.uk/sites/default/files/McCunn%20-%20Forbearance%20Incentives.pdf ; Persaud, Avinash, Why Bail-In Securities Are Fool’s Gold, Peterson Institute for International Economics Policy Brief No. 14-23, November 2014; https://piie.com/sites/default/files/publications/pb/pb14-23.pdf

(65) European Securities and Markets Authority, Potential Risks Associated with Investing in Contingent Convertible Instruments (ESMA/2014/944), 31 July 2014; https://www.esma.europa.eu/sites/default/files/library/2015/11/2014-944_statement_on_potential_risks_associated_with_investing_in_contingent_convertible_instruments.pdf

(66) Financial Conduct Authority, Temporary Product Intervention Rules: Restrictions in Relation to the Retail Distribution of Contingent Convertible Instruments, August 2014; https://www.fca.org.uk/publication/tpi/restrictions-in-relationto-the-retail-distribution-of-cocos.pdf

 

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