Ano de 2019, ano de eleições europeias. Parte I – Grandes planos sobre uma União Europeia em decomposição. 1º Texto – As onze questões sobre a União Europeia, de Coralie Delaume e David Cayla

As onze questões sobre a União Europeia, de Coralie Delaume e David Cayla

(Jacques Sapir, 16 de Março de 2018)

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Sobre a União Europeia, sobre a democracia

Este livro é, portanto, composto de 11 capítulos, mas na verdade cobre 4 temas principais. O primeiro é, evidentemente, a questão da União Europeia e da sua relação com a democracia. Porque, e assim tem acontecido desde a década de 1970, tem havido um debate constante sobre a realidade democrática do processo de construção da CEE e depois da UE. Este debate foi, naturalmente, um ponto de viragem, quer se tratasse da adoção do famoso “Ato Único” nos anos 80, do Tratado de Maastricht ou, claro, do referendo de 2005 sobre o projeto de Tratado Constitucional.

Recorde-se que as eleições europeias são eleições para o Parlamento Europeu, por sufrágio universal desde 1979. Mas que poderes tem este Parlamento? Coralie Delaume e David Cayla mostram de forma muito convincente que este Parlamento não é, nem pode ser, um “legislador” no sentido entendido por Carl Schmitt no seu livro Légalité, Légitimité[3]. Os nossos dois autores mostram que o Parlamento partilha este poder legislativo em grande medida com dois outros organismos, o Conselho Europeu, onde os Estados estão representados, e o Tribunal de Justiça da União Europeia. Pode mesmo ser considerado como um “parlamento sem poderes efetivos”, precisamente porque não tem nem a iniciativa nem a última palavra sobre a regulamentação europeia. Salientam, com razão, o papel extremamente importante do TJCE, que, desde os seus primeiros acórdãos em 1963 e 1964, se estabeleceu simetricamente como juiz e legislador constitucional [4]. Com efeito, o TJCE desempenhou um papel muito decisivo na deriva da União Europeia de uma organização internacional para uma organização supranacional [5]. Sabemos que o plano de Emmanuel Macron é reforçar esta deriva e fazer com que a UE dê o salto para o “federalismo”, como mostra o artigo que ele publicou na imprensa [6]. Sabemos também que isto é firmemente rejeitado pelos dirigentes alemães e, em particular, pela Sra. Annegret Kramp-Karrenbauer, presidente da CDU [7].

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Mas, se a UE tende agora para a organização supranacional, ela não dispõe dos meios financeiros para o fazer. Estes continuam a ser, em grande medida, uma prerrogativa dos Estados-Membros, e o orçamento da UE é financiado apenas pelas contribuições dos Estados-Membros, contribuições que no caso da Alemanha, França e Itália são contribuições líquidas (os países dão mais do que recebem da UE). Com efeito, o Parlamento Europeu continua em grande medida desprovido dos atributos lógicos de um Parlamento, o que se explica pelo facto de não representar um “povo”, no sentido de uma comunidade política, mas representar povos, cada um com a sua própria singularidade e história política. Esta realidade foi reconhecida pelo equivalente alemão do Tribunal Constitucional, o Tribunal de Karlsruhe. No seu acórdão de 30 de Junho de 2009, o Tribunal de Karlsruhe decidiu que, devido aos limites do processo democrático na Europa, só os Estados nacionais são detentores de legitimidade democrática [8].

Quem dirige a UE?

Os nossos dois autores colocam então a questão de saber quem dirige a União Europeia [9]. E é aqui que o problema da estrutura da UE se revela, tanto na sua natureza tecnocrática como na sua lógica de “governação dos juízes”. De facto, foi o Presidente Barroso que sujou a manta em 2014. Ao afirmar peremptoriamente que a UE é um projeto “sui generis”[10], Durão Barroso procura excluir-se de qualquer controlo democrático e pretende eliminar a possibilidade de um desafio legítimo, enterrando assim o princípio da soberania nacional, mas sem o substituir por um outro princípio.

É o facto do Príncipe em toda sua nudez, certamente escondido numa fórmula cuja homenagem (involuntária) à sua fábula do morcego e a doninha. Jean de La Fontaine [11] apreciaria.

Tradução livre de um excerto da fábula de La Fontaine:

Um morcego cai num ninho de doninhas. Diz a doninha, que gosta muito de comer ratos, ao morcego assustado: “Você é um Rato,” disse ela “e eu sou, por natureza, inimiga dos Ratos. Cada Rato que pego, evidentemente, é para mim um bom jantar, essa é a lei…”

“Mas, senhora doninha, veja bem, eu definitivamente, não sou um Rato…” tentou-se explicar o infeliz morcego. “Veja minhas asas. A senhora já viu um Rato que é capaz de voar? Claro que sou apenas um tipo de pássaro, de uma variedade, podemos afirmar, um tanto quanto exótica. Por favor deixe-me ir embora…”

A Doninha, olhando melhor para sua vítima, concordou que ele não era um Rato e deixou-o ir embora. Mas, alguns dias depois, o mesmo atrapalhado Morcego, cegamente, voltou a cair, dessa vez no ninho de outra Doninha, que era inimiga dos pássaros. Esta, viu-o como um pássaro, e preparando-se para o comer disse-lhe: : “Você é um pássaro por isso mesmo vou comê-lo.”

“O quê?”, exclamou o Morcego, “Eu, um pássaro? Isso é quase um insulto. Todos os pássaros possuem penas! Onde é que estão as penas? A senhora é capaz de as ver? Claro que não sou nada para além de um simples Rato. Eu sou um rato, vivam os ratos Tenho até um lema que é: Abaixo todos Gatos!” E assim, o Morcego teve sua vida poupada pela segunda vez.”

Fim de citação sobre a fábula de La Fontaine.

Esta desintegração da soberania nacional, a que se alude acima, foi estabelecida com o Tratado de Maastricht. Cresceu a dar pequenos passos. Tornou-se evidente no referendo de 2005 sobre o projeto de Constituição e na subsequente negação de justiça que conduziu ao Tratado de Lisboa. Victor Hugo já o disse [12], e como no seu tempo podemos escrever que “estamos a ser gradualmente privados de tudo o que os nossos quarenta anos de revolução nos permitiram adquirir em termos de direitos e franquias… (…) O leão não tem a moral de uma raposa [13] “.

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Os nossos dois autores têm toda a razão em insistir neste ponto[14]. No entanto, poderiam ter mencionado a tentativa de estabelecer uma lei europeia fora de qualquer soberania, uma tentativa cujo melhor representante é Andras Jakab. Este último rejeita o papel fundador da Soberania, tal como emerge do trabalho de Bodin e Jean-Jacques Rousseau. Com efeito, esta abordagem está em perfeita sintonia com o discurso da União Europeia. Vale a pena fazer uma pausa por um momento para tentar entender do que se trata. Jakab, após uma análise comparativa das várias interpretações da soberania, defende no caso francês que: “a soberania popular pura foi comprometida por um amplo abuso de referendos sob o reinado de Napoleão I e Napoleão III, uma vez que a soberania nacional pura sendo considerada insuficiente em termos da sua legitimação[15]”.

Isto é argumentar que um abuso perverteria o princípio assim abusado. Mas isto só pode ser feito se o abuso demonstrar uma incompletude do princípio e não da sua implementação. Ocorre aos contemporâneos destruir as ferrovias em nome da sua utilização pelos nazis na destruição genocida de judeus e ciganos? No entanto, esta é a base do raciocínio de Jakab. No entanto, está longe de ser óbvio na utilização política do plebiscito que essa utilização é a única possível. Embora um plebiscito seja de facto um instrumento antidemocrático, nem todos os referendos são plebiscitos. A confusão estabelecida pelo autor entre as duas noções é muito perigosa e, para ser franco, desonesta. A prática de assimilar referendos e plebiscitos, porque isso é o que se refere no texto, é um erro lógico [16]. A estratégia da confusão é praticada voluntariamente. O que o Conselho Constitucional reconhece neste caso é a superioridade lógica da Constituição sobre a Lei. Isto não é, de forma alguma, como Jakab afirma erradamente, o encadeamento da soberania. De facto, dizer que o processo legislativo deve ser regido por uma Constituição apenas repete o Contrato Social de Rousseau [17]. O que está em causa é, de facto, a parcialidade do autor em recusar ou procurar limitar o conceito de Soberania.

Mesmo que isso significasse colocar mais duas páginas no livro, uma crítica no fundo da ideologia levada pelo discurso de Jakab e pelas instituições europeias teria sido esclarecedora para o que se segue.

A UE e a questão social

Porque, no resto do seu livro, os nossos dois autores irão discutir a inexistência de um casal franco-alemão, um ponto já abordado por Coralie Delaume num livro de 2018 [18], mas também questionar o drama da Grécia e o exemplo de Portugal. Isto leva-os ao segundo tema estruturante do livro, a UE e a questão social. Muito se tem falado sobre a Grécia. É lamentável que os nossos dois autores atribuam tanto peso ao testemunho de Varoufakis, que é, sem dúvida, importante mas tendencioso porque o antigo Ministro grego também está a tentar, e é óbvio, a atribuir-se a si-mesmo um bom papel.

Sobre a questão de Portugal, Coralie Delaume e David Cayla analisam de forma muito interessante, em poucas páginas, tanto o sucesso (relativo) da estratégia do governo português como as suas limitações. Mostram de forma convincente que aquilo a que agora se chama um “sucesso” nos círculos de “esquerda” se baseia, na realidade, numa emigração massiva e numa estratégia desenvergonhada de dumping social e fiscal [19]. A conclusão a que chegam é que Portugal adotou uma estratégia “parasitária”[20], uma estratégia que seria chamada, na linguagem de um economista (e entusiasta da teoria dos jogos), uma estratégia de passageiro clandestino.

Isto leva os nossos dois autores a discutir o impacto da UE na questão social. Mostram muito pertinentemente que a harmonização social e fiscal na União Europeia é uma farsa [21]. Esta última foi concebida de forma suficientemente explícita para colocar os países em concorrência entre si [ e é basicamente o aprofundar da concorrência entre os países que interessa à União Europeia]. Outros já o tinham dito, e é lamentável que não sejam mencionados [22]. Deixem-nos anotar aqui um pequeno erro de apresentação. Cayla e Delaume constroem a sua demonstração com base no salário por hora. Mas, esta mesma demonstração teria sido muito mais poderosa, e mais exata, se tivessem feito a sua análise partindo da evolução do custo salarial por unidade de produto produzida, por outras palavras, partindo da evolução do salário por hora ajustado pela evolução de produtividade por hora. Poderiam ter demonstrado que a diferença [entre a evolução salarial e a evolução da produtividade] está a aumentar a favor desta última e não a diminuir, [como seria o caso se o importante fosse a Europa Social] uma vez que a produtividade está a aumentar muito mais rapidamente nos novos Estados-Membros da UE do que o salário por hora [23].

 No entanto, esta crítica não prejudica a demonstração de Coralie Delaume e David Cayla, que parece sólida e bem argumentada. Hoje em dia, ninguém pode contestar que a prática de dumping, fiscal ou social, é parte integrante da União Europeia. Um dos aspetos mais importantes deste livro é precisamente recordá-lo e mostrar que não pode haver “Europa Social” no quadro da UE.

A UE e o euro

Um terceiro tema importante, ao qual é dedicado um capítulo, mas que, na realidade, percorre parte do livro, é a questão do euro. Esta questão é abordada nos capítulos relativos à Grécia e a Portugal. Com efeito, as condições criadas pelo euro fazem-se sentir em muitos domínios. Este ponto é destacado muitas vezes em diferentes capítulos do livro.

O capítulo especificamente dedicado ao euro abrange todas as desvantagens da moeda única. Analisa as consequências das interligações bancárias e financeiras e salienta que a zona euro está, de facto, amplamente aberta a crises especulativas vindas do exterior. Mas, neste capítulo, gostaríamos de ver citados os estudos do Fundo Monetário Internacional, estudos que precisamente fornecem alimento de reflexão para os nossos dois autores [24], e que foram confirmados por um artigo de 2018 na revista OFCE [25]. Mais lamentavelmente, o livro esquece-se de citar o livro de Joseph Stiglitz, que inclui todos estes pontos [26]. Os dois livros que são então citados são o de James Galbraith e o de Yannis Varoufakis, dois livros cujas qualidades não devem ser aqui negadas, mas que estão muito mais centrados na crise grega do que no euro, e que teria sido lógico citar mais amplamente no capítulo dedicado precisamente à crise grega. De um modo mais geral, há muitas referências às desvantagens do euro. Pensemos aqui no trabalho do economista alemão Jorg Biböw que, já em 2007, chamou a atenção dos seus colegas para os riscos que a zona euro representava para a economia europeia, mas também para a economia mundial [27].

Há outro problema mais sério. Neste capítulo, os dois autores (e ISTO não é um insulto a Coralie Delaume pensar que foi David Cayla quem, sendo economista, o terá escrito), analisam as consequências financeiras de uma possível saída do euro [28].

Afirmam que esta saída pode causar problemas a alguns atores. No entanto, não mencionam o trabalho realizado por Cédric Durand e Sébastien Villemot, publicado pela OFCE, que analisa muito precisamente as consequências financeiras de uma tal saída [29]. É importante recordar aqui que Durand e Villemot chegam a resultados que mostram que, para os países do Sul da zona euro, com exceção de Espanha, os efeitos financeiros de uma saída seriam, na pior das hipóteses, negligenciáveis ou mesmo favoráveis. Do mesmo modo, teríamos gostado de ver que a atitude dos outros países da União Europeia que não são membros da zona euro fosse melhor analisada.

Sejamos realistas, estes problemas não afetam o conteúdo geral do livro. Mas eles são irritantes porque os críticos da tese geral do livro podem usá-los para procurar reduzir a sua importância.

O que fazer com a UE?

O quarto tema que atravessa este livro não é outro senão a atitude que podemos ter em relação à UE. Esta é uma questão politicamente sensível, uma vez que alguns movimentos são a favor da saída da UE (o chamado “FREXIT”) e outros têm posições que podem ser consideradas mais matizadas ou ambivalentes. O que este livro mostra, de uma forma particularmente clara, é que a UE está a conduzir uma corrida para o “mais baixo nível” social e fiscal e que não pode ser alterada neste ponto a partir do seu interior. Com efeito, é necessária unanimidade para alterar os Tratados. A questão dos trabalhadores destacados é aqui exemplar. O Governo francês afirma ter obtido mudanças substanciais, mas rapidamente vemos que não é esse o caso. Deste ponto de vista, as diferentes posições que pedem ou votam a favor de uma “outra Europa” não são nem sérias nem credíveis, pelo menos se por “outra Europa” entendemos “outra UE”. Da mesma forma, as propostas de “desobediência” aos tratados existentes não podem ser equiparadas ao que é chamado de “opting-out” porque este último requer um tratado. Deve ser sabido que dizer que não se quer aplicar um tratado, ou que se quer “sair” de um tratado, não pode ser feito dentro do quadro jurídico da UE. Isto não significa, evidentemente, que isso não possa ser feito, mas significa que, para o fazer, será necessário violar a legalidade da UE e impor outras normas jurídicas. Poucas pessoas falam de “desobediência” e se referem a esta realidade e retiram todas as consequências de uma saída da legalidade da UE e, por conseguinte, da rejeição do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Esta ambiguidade de posições é particularmente clara no que respeita à “France Insoumise”.

Independentemente da forma como encaremos o problema, é evidente que a saída da UE está no limite. Esta saída pode, na verdade, ser uma rutura generalizada, uma vez que pode assumir a forma de uma crise que leve alguns países a romper com a UE, enquanto outros optariam por se manter dentro dela.

Mas, por outro lado, os dois autores do livro analisam muito claramente a outra ambiguidade que consiste em realçar o artigo 50. Com efeito, e as aventuras do Brexit mostram-no cada vez mais claramente, o artigo 50 não foi escrito para ser aplicado. Trata-se de colocar o país que quer deixar a UE nas mãos da UE. Trata-se de uma visão profundamente tecnocrática e apolítica do problema da saída da UE da UE. No entanto, precisamente, a lógica da UE tem sido a de procurar despolitizar questões políticas, reduzi-las a questões puramente técnicas [30].

Como podemos ver, é uma ilusão querer sair da UE através dos procedimentos que a própria UE estabeleceu, querer sair da UE cumprindo ao mesmo tempo as próprias normas que esta estabeleceu.

Assim, nesta questão, não podemos deixar de pensar numa acção excepcional, uma ação que está prevista na Constituição, nomeadamente no artigo 16º.

O referendo e o artigo 16

Por conseguinte, somos remetidos para a questão da ação excecional. Temos de voltar a Carl Schmitt outra vez [31]. Quando este último invoca o decisionismo, ou seja, a capacidade do Estado de tomar decisões fora de qualquer quadro jurídico, indica quem é o “soberano”. É em estado de emergência, um princípio reconhecido por qualquer jurista consistente, que se afirma e se revela a soberania . Sabemos que para Carl Schmitt “aquele que decide sobre a situação excecional é soberano”[32]. Esta definição é importante. No entanto, temos de nos limitar às palavras. Schmitt não escreve “na situação”, mas “da situação”. É o facto de se dizer que uma situação é excecional que estabeleceria o soberano. Emmanuel Tuchscherer assinala, então, com razão, que isto “marca o vínculo entre o monopólio decisório, que se torna a marca essencial da soberania política, e um conjunto de situações resumidas pelo termo Ausnahmezustand, que descreve, por trás da genialidade do termo “situação excecional”, aqueles casos limítrofes que C. Schmitt enumera no resto da passagem sem distinguir realmente entre: “casos de necessidade” (Notfall), “estado de emergência” (Notstand), “circunstâncias excecionais” (Ausnahmefall), em suma, as situações típicas de extremus necessitatis casus que tradicionalmente requerem a suspensão temporária da ordem jurídica ordinária “[33].

É aqui importante compreender que esta suspensão da “ordem jurídica ordinária” não implica a suspensão de qualquer ordem jurídica. Muito pelo contrário. A Lei não cessa com a situação excecional, mas transforma-se. O par legalidade e legitimidade continuam a funcionar, mas aqui a legalidade deriva direta e praticamente sem mediação da legitimidade. O ato de autoridade legítima torna-se, nos factos da situação excecional, um ato jurídico. E então podemos compreender a importância de uma definição clara de soberania.

Só a comunidade política, o chamado povo, está em posição de definir o interesse geral e ninguém pode pretender dirigir ou limitar essa capacidade. Mas, o povo fá-lo em algum momento. Além disso, a definição de interesse geral só pode ser contextual, a menos que se afirme que o povo, ou os seus representantes, são capazes de omnisciência. Este ponto de vista é uma condenação radical de todas as tentativas de naturalizar a lógica política, colocando limites e “interesses” fora de contexto.

A decisão soberana lança um pouco mais de luz sobre o que C. Schmitt designa como situação excecional. Se for desencadeada fora da ordem jurídica normal, ela não escapa completamente à lei, uma vez que não há exceção, pois que não há exceção qualificada como tal. A exceção suspende a ordem jurídica ordinária, a que funciona em circunstâncias normais. Mas a exceção não se liberta de qualquer ordem jurídica. Não designa de modo nenhum um nada nada ou uma pura anomia. Pelo contrário, a exceção mostra a vitalidade de outra variante desta ordem. Pode ser considerada como a ordem política ou soberana geralmente escondida atrás do marco puramente formal e processual da ordem normativa do direito comum: “Nesta situação, uma coisa é clara: o Estado subsiste enquanto a lei recua. A situação excecional é sempre outra coisa ainda mais do que anarquia e caos, e é por isso que, no sentido jurídico, há sempre uma ordem, mesmo uma ordem que não é correcta. A existência do Estado aqui mantém uma inegável superioridade sobre a validade da norma legal” [34].

Há, portanto, duas saídas possíveis da UE, duas vias que terão de ser combinadas: o referendo e o artigo 16º. Estes dois canais deverão, por conseguinte, ser utilizados. Esta é a conclusão que pode ser tirada deste livro por Coralie Delaume e David Cayla.


Notas:

[1] Cayla D., Delaume C., 10 questions + 1 sur l’Union européenne, Paris, Michalon, 2019.

[2] Cayla D., Delaume C., La fin de l’Union européenne, Paris, Michalon, 2017.

[3] Schmitt C., Légalité, Légitimité, traduzido do alemão por W. Gueydan de Roussel, Librairie générale de Droit et Jurisprudence, Paris, 1936; édition allemande, 1932.

[4] Cayla D., Delaume C., 10 questions + 1 sur l’Union européenne, op. cit., p. 13.

[5] Idem, p. 14.

[6] https://www.elysee.fr/emmanuel-macron/2019/03/04/pour-une-renaissance-europeenne

[7] https://www.cdu.de/artikel/faisons-leurope-comme-il-faut-getting-europe-right

[8] Ver H. Haenel, « Rapport d’information », n° 119, Sénat, session ordinaire 2009-2010, Paris, 2009.

[9] Cayla D., Delaume C., 10 questions + 1 sur l’Union européenne, op. cit., p. 21.

[10] Barroso J-M., Speech by President Barroso: “Global Europe, from the Atlantic to the Pacific”, Speech 14/352, discurso pronunciado na Universidade de Stanford, 1 de maio de 2014

[11] E antes dele, Esopo, mas isto é toda uma outra história ….

[12] Ver a sua defesa face ao Tribunal do Comércio, aquando do « Procès de Monsieur Victor Hugo Contre le THEÂTRE-FRANCAIS, et Action en Garantie du THEÂTRE-FRANCAIS Contre le Ministre des Travaux Publics» em 1832:

http://librairie.immateriel.fr/fr/read_book/9782824701387/chap_0035

[13] http://librairie.immateriel.fr/fr/read_book/9782824701387/chap_0035

[14] Cayla D., Delaume C., 10 questions + 1 sur l’Union européenne, op. cit., p. 21-22.

[15] Jakab A., « La neutralisation de la question de la souveraineté. Stratégies de compromis dans l’argumentation constitutionnelle sur le concept de souveraineté pour l’intégration européenne », in Jus Politicum, n°1, p.4, URL : http://www.juspoliticum.com/La-neutralisation-de-la-question,28.html

[16] Décision 85-197 DC 23 Août 1985, Voir : Jacques Ziller, « Sovereignty in France: Getting Rid of the Mal de Bodin », in Sovereignty in Transition. éd. Neil Walker, Oxford, Hart, 2003.

[17] Rousseau J-J., Du Contrat Social, Flammarion, Paris, 2001.

[18] Delaume C., Le Couple Franco-Allemand n’existe pas, Paris, Michalon, 2018.

[19] Cayla D., Delaume C., 10 questions + 1 sur l’Union européenne, op. cit., p. 60-61.

[20] Ibidem, p. 62.

[21] Ibidem, p. 70 et ssq.

[22] Denord F. et Schwartz A., L’Europe Sociale n’aura pas lieu, Paris, Raisons d’agir, 2009.

Nota de tradutor: Numa entrevista ao L’Humanité dizem-nos Denord F. e Schwartz A. disponível em : https://www.humanite.fr/node/417987

“ Esta Europa diz sempre que pretende unir: unir os povos, unir os cidadãos… Mas, na verdade, ela está sempre a dividi-los, nunca deixa de se estar sempre a opor-se-lhes: opõe-se à proteção social entre eles, opõe-se aos trabalhadores entre eles e coloca a economia sob pressão… Coloca a legislação social em concorrência entre si e, em última análise, coloca as próprias sociedades contra elas próprias. …..

Pergunta do L’Humanité aos dois autores: {Se nos basearmos nessa análise, não poderemos nós considerar que Margaret Thatcher, muitas vezes apresentada na França como isolada, mesmo marginalizada, está de facto no coração da construção neoliberal desta nossa Europa??

[*François Denord*]. Claro que sim. No nosso livro, L’Europe Sociale n’aura pas lieu, voltamos a esta oposição construída nos anos 80 entre a visão de Margaret Thatcher e a de Jacques Delors. Em nossa opinião, estas são as duas facetas da União Europeia: por um lado, temos o mercado único e nada mais do que o mercado, e, por outro lado, o mercado em primeiro lugar, até fazermos melhor… Fala-se de alguém que é a favor de uma liberalização em grande escala ou de alguém que aceita uma liberalização em grande escala, rezando para que, mais tarde, possamos construir uma Europa um pouco social.

[*Antoine Schwartz*]. Há, penso eu, uma verdadeira oposição entre eles, porque Jacques Delors não teve o mesmo sonho da Europa que Margaret Thatcher, mas o que é interessante é que, na realidade, estas duas figuras puseram-se de acordo em impulsionarem em conjunto o Acto Único Europeu e completar a Europa dos mercados.

[*François Denord*]. As posições tchetcharianas, ou mesmo, hoje, as de Vaclav Klaus, Presidente da República Checa, frequentemente apresentadas como “eurofóbicas”, estão, de facto, totalmente em conformidade com esta Europa. Na União Europeia, somos apanhados entre neoliberais e ultra-liberais que recusam qualquer intervenção “burocrática”. E, na melhor das hipóteses, trata-se de encontrar uma posição entre dois limites muito precisos: uma economia social de mercado e uma economia de mercado. Todo o “debate” está aí”. Fim de citação do excerto da entrevista concedida ao L’Humanité .

[23] Cayla D., Delaume C., 10 questions + 1 sur l’Union européenne, op. cit., p. 71.

[24] Voir http://www.imf.org/en/Publications/Policy-Papers/Issues/2017/07/27/2017-external-sector-report et http://www.imf.org/en/Publications/Policy-Papers/Issues/2016/12/31/2016-External-Sector-Report-PP5057

[25] Villemot, S, B Ducoudre et X. Timbeau. 2018. “Taux de change d’équilibre et ampleur des désajustements internes à la zone euro.” Em Revue de l’OFCE, no. 155, pp. 303-334.

[26] Stiglitz J.E., L’Euro : comment la monnaie unique menace l’avenir de l’Europe, Paris, Les Liens qui Libèrent, 2016.

[27] Bibow J. et A. Terzi (dir.), Euroland and the World Economy: Global Player or Global Drag?, New York (N. Y.), Palgrave Macmillan, 2007

[28] Cayla D., Delaume C., 10 questions + 1 sur l’Union européenne, op. cit., p. 101.

[29] https://www.ofce.sciences-po.fr/blog/effets-de-bilan-dun-eclatement-de-leuro/ Este texto foi publicado em 2018 sob a forma de um artigo, Durand, C. and S. Villemot. 2018. “Balance sheets after the EMU : an assessment of the redenomination risk.” in Socio-Economic Review

[30] Bellamy R., « Dirty Hands and Clean Gloves: Liberal Ideals and Real Politics », European Journal of Political Thought, Vol. 9, No. 4, pp. 412–430, 2010

[31] Scheuerman W.E., « Down on Law: The complicated legacy of the authoritarian jurist Carl Schmitt », in Boston Review, vol. XXVI, n° 2, avril-mai 2001

[32] Schmitt C., Théologie Politique, traduction française de J.-L. Schlegel, Paris, Gallimard, 1988; édition originelle en allemand 1922, p.16.

[33] Tuchscherer E., « Le décisionnisme de Carl Schmitt : théorie et rhétorique de la guerre » in Mots – Les langages du Politique n°73, 2003, pp 25-42.

[34] Schmitt C., Théologie politique I, op.cit. p.22.


O segundo texto desta série será publicado amanhã, 11/05/2019, 22h


Tradução de Júlio Marques Mota – Fonte aqui

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