Dos conhecimentos básicos em finança à opacidade e complexidade do mundo financeirizado: uma exposição e uma análise crítica. Parte IV – A titularização como meio para continuar na trajetória da crise – 1. Uma oportunidade falhada de restabelecer a finança não-criativa, a finança segura, a finança sã – uma análise sobre a Iniciativa de Financiamento a Longo Prazo da União Europeia (3ª parte). Por Finance Watch

Jan Brueghel the Younger Satire on Tulip Mania c 1640
Jan Brueghel the Younger, Satire on Tulip Mania, c. 1640

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Parte IV – A titularização como meio para continuar na trajetória da crise

 Parte IV texto 1 1

1. Uma oportunidade falhada de restabelecer a finança não-criativa, a finança segura, a finança sã – uma análise sobre a Iniciativa de Financiamento a Longo Prazo da União Europeia (3ª parte)

Por Finance Watch, em 15 de dezembro de 2014

Autor: Frédéric Hache. Editor: Greg Ford

(3ª parte)

I. Contexto, opções e narrativa (continuação)

(…)

2. Sobre o esperado declínio dos empréstimos bancários

A desalavancagem não implica necessariamente um declínio dos empréstimos bancários às empresas não financeiras e às famílias

Um dos principais argumentos a favor da promoção de fontes alternativas de financiamento é que os bancos precisam de se desalavancar no seguimento da crise e de se ajustarem à nova regulamentação prudencial, o que irá prejudicar a sua capacidade de emprestar em termos de prazos longos.

Se por capacidade nós entendermos a capacidade do balanço, verificamos que este argumento é um atalho altamente discutível: em primeiro lugar, a desalavancagem pode ser alcançada através de diferentes canais, incluindo a retenção de lucros, a redução de algumas atividades, a emissão de novas ações e livrarem-se de maus ativos, os ativos tóxicos. A desalavancagem através da reestruturação e venda de ativos não-rentáveis pode exigir que os bancos reconheçam as suas perdas no curto prazo, ainda aqui esta é a desalavancagem que é necessária. Neste contexto, a avaliação feita pelo BCE em 2014 quanto à qualidade dos ativos irá fornecer os incentivos adequados para que os bancos continuem a limpar os balanços e a libertar liquidez que possa estar ainda presa em ativos podres.

Em segundo lugar, mesmo se um banco escolhe desalavancar reduzindo a dimensão de algumas das suas atividades, isso não significa automaticamente que os empréstimos para a economia real irão diminuir: de acordo com o Grupo de Peritos de Alto Nível sobre a reforma da estrutura do sector bancário da UE [14], os empréstimos às famílias e às sociedades não financeiras representam 28% nos balanços dos bancos europeus, enquanto a desalavancagem deverá representar cerca de 7,5% do total dos ativos  [15]. Segue-se que os empréstimos bancários não têm que diminuir, e que a desalavancagem pela redução da concessão de empréstimos a sociedades não financeiras e a famílias seria uma escolha de gestão do banco para alocar capital para atividades mais rentáveis.

Como a Comissão Europeia se expressou “não existe nenhuma relação unívoca entre as mudanças na dimensão dos balanços dos bancos e a concessão de empréstimos para a economia, e muito menos para um crescimento económico sustentável. Dito de outra forma, as reduções do balanço e a desalavancagem podem ser alcançadas sem reduzir os empréstimos à economia real – por exemplo, através da redução de exposições intra-financeiras do sistema e cortando nas redes de intermediação longas” [16].

A recente decisão do BCE de introduzir condicionalidade à sua Operação de Refinanciamento de Longo Prazo, vinculando a concessão de empréstimos bancários a baixo custo do BCE a empréstimos adicionais desses bancos, há muito que era necessária e poderá contribuir para recentrar os bancos sobre a atividade de concessão de empréstimos em vez de estarem a utilizar o dinheiro para comprar dívida soberana e ganharem com o diferencial das taxas de juros. Alguns, no entanto, estão céticos de que isto vai incentivar mais empréstimos dadas as condições serem tão fáceis de cumprir [17].

Além disso, um recente relatório do BIS (Bank for International Settlements) constatou que mesmo um declínio no crédito bancário ao sector privado não restringe necessariamente a retoma da economia: nas últimas 39 crises as mudanças no crédito bancário não se correlacionaram significativamente com o crescimento, pelo que que há uma ausência de associação entre desalavancagem e velocidade de retoma. “Os nossos resultados contradizem o atual consenso de que a desalavancagem do sector privado é necessariamente prejudicial para o crescimento” [18].

É essencial distinguir entre modelos de negócio bancários quando se discute a dimensão do setor bancário

Também pode valer a pena investigar se alguns tipos de modelos de negócio dos bancos mais centrados nos empréstimos a clientes de retalho e às empresas não financeiras se podem mostrar como sendo mais úteis e devem, portanto, ser promovidos. Os bancos tradicionais centrados sobretudo em atividades de concessão de créditos não são apenas grandes credores para a economia real, mas podem também ter muito sucesso, e não contribuíram para o rebentar da crise nem precisaram de qualquer resgate, ao contrário de uma perceção equivocada de que a crise foi provocada por todos os bancos. Ao projetar novas regulamentações, não devemos esquecer que a crise foi de facto uma crise do sistema bancário sombra e da banca de investimento, não da banca comercial tradicional.

Como exemplo o Svenska Handelsbanken, um “banco tradicional, seguro” que não tem metas de vendas, não paga bónus, não tem sistema de pontuação de crédito, mas tem uma gestão descentralizada, goza de taxas excecionalmente baixas de perdas com empréstimos, com custos de financiamento entre os mais baixos do sector e é um banco com muito sucesso [19]. E, no entanto, surpreendentemente, o modelo de banco que está a ser promovido na Iniciativa de Financiamento de Longo Prazo é o modelo universal de banco de investimento, um modelo que tende a preferir alocar o seu capital para alternativas mais rentáveis do que a concessão de empréstimos à economia real e que se revelou muito frágil durante a crise.

Um recente estudo do BIS [20] concluiu “que as instituições que exercem as suas atividades bancárias principalmente no sector comercial têm custos mais baixos e lucros mais estáveis do que os bancos mais fortemente envolvidos em atividades do mercado de capitais, principalmente de trading, isto é, de especulação“.

Um estudo recente [21] questiona se o crescimento de bancos universais que terá levado a Europa a ter um sistema bancário sobredimensionado, não é suficientemente revelador do facto de que esse sobredimensionamento não esteve no sector bancário comercial que faz sobretudo empréstimos financiados por depósitos, mas sim nas atividades de mercado de capitais financiados pelo financiamento por grosso.

Isto tem implicações fundamentais: se não fizermos esta distinção, podemos concluir erroneamente que precisamos diminuir o tamanho do sector bancário da UE no seu todo e promover o financiamento através do mercado de capitais. Por outro lado, se nós reconhecemos que o que cresceu não foi a atividade de empréstimos comerciais tradicionais mas sim as atividades de financiamento nos mercados de capitais, atividades estas financiadas pelo sector bancário sombra, então a conclusão é a oposta, ou seja, que talvez seja necessário diminuir as atividades de mercado de capitais dos bancos e o sistema bancário sombra (shadow banking) e incentivar as atividades bancárias tradicionais.

Parte IV texto 1 5

Parte IV texto 1 6

Quanto ao argumento de que a regulação prudencial restringe a concessão de empréstimos, a nova regulamentação prudencial ao exigir que os bancos estejam melhor capitalizados irá torná-los capazes de emprestar mais, e não menos: porque os bancos têm acesso ao refinanciamento ilimitado do banco central, a oferta de crédito bancário só pode ser limitada pelo seu capital e pela quantidade de garantias elegíveis que possam fornecer ao banco central. Portanto, quanto mais capital eles têm, mais capital podem emprestar.

Reconhecidamente a redução dos níveis de rentabilidade dos bancos tem a ver com a qualidade dos ativos, e a falta de credibilidade do cálculo de risco ponderado dos ativos pode tornar mais difícil para eles a emissão para obtenção de capital fresco. No entanto, dados recentes [22] indicam um crescente apetite dos investidores pela dívida bancária europeia e por ações da banca, incluindo sobre a periferia da UE, refletindo melhorias no balanço dos bancos.

Conforme referido pela Comissão Europeia [23], o argumento de que os futuros rácios de liquidez irão conter os empréstimos e a transformação das maturidades é também um atalho: os bancos podem melhorar a sua liquidez, quer atraindo mais financiamento com prazo superior a um ano quer substituindo os seus ativos por ativos considerados mais líquidos tais como dívida pública. O maior custo de financiamento estável [24] e o tratamento prudencial preferencial da dívida soberana pode atrair os bancos para favorecer a última escolha [25], com a consequência de que os títulos da dívida pública ultrapassam a concessão de empréstimos [26], no entanto, isto levaria principalmente a favorecer uma recalibração saudável do tratamento prudencial das dívidas soberanas e não dando margens a escolhas.

Os rácios de liquidez estabelecidos por CRD IV não implicam mecanicamente um declínio do crédito bancário

Os novos rácios de liquidez também apenas poderão travar a transformação de maturidade entre um dia e 12 meses e, portanto, é pouco provável que evitem a requerida transformação da maturidade dos empréstimos de longo prazo entre 12 meses e 20 anos (sujeitos a calibração futura pela European Banking Authority). Em todo o caso, o período de observação atual, anterior à introdução destes novos rácios, tem precisamente como objetivo identificar e abordar as consequências potenciais não intencionais [27].

Na verdade, a investigação recente concluiu que “as preocupações sobre o excesso de regulamentação e seu impacto sobre os empréstimos, têm-se revelado até agora infundadas[28] e que “a maior parte do ajustamento tem-se realizado através da acumulação de lucros não distribuídos, mais do que através de ajustamentos acentuados sobre os empréstimos ou sobre o crescimento dos ativos[29].

Em geral, segundo a European Banking Federation, enquanto alguns mercados nacionais têm sofrido dificuldades específicas ligadas às economias locais mais fracas, “globalmente, o crédito fornecido pelos bancos parece ter largamente compensado a procura de crédito[30]. Da mesma forma, o European Savings and Retail Banking Group considerou que “do lado da oferta, na grande maioria dos casos, a disponibilidade de financiamento não é problemática nesta crise. De um modo geral, não há fundamentalmente nenhuma escassez na oferta de empréstimos[31].

 

Os dados já não parecem suportar a presunção de que a Europa depende mais do crédito bancário que os EUA

A forte dependência da Europa relativamente ao sistema bancário em comparação com os Estados Unidos também é apontada como uma razão para promover o financiamento do mercado de capitais. Deve-se, primeiro que tudo, referir que forte dependência não é a mesma coisa que excessiva dependência, e não implica, em si-mesmo, a necessidade de mudar o modelo europeu. Mais importante ainda, os dados não parecem apoiar a hipótese de que o financiamento nos Estados Unidos é de cerca de 70% em títulos e de 30% em empréstimos, enquanto na Europa seria o oposto. Um estudo recente [32] mostra que os empréstimos agora compõem-se mais de mistura nos EUA do que na Europa: “nos três anos que antecederam a crise de crédito, os empréstimos foram a fonte de financiamento mais utilizada pelas empresas nos EUA, atingindo 74% da combinação (mix) de financiamentos, em comparação com 18% para as obrigações e 8% para investimentos em ações. Da mesma forma na Europa (excluindo o Reino Unido) os empréstimos representaram 75%, as obrigações 15% e as ações cerca de 10%. (..) Nos últimos três anos nos EUA os empréstimos têm sido em média de 68%, as obrigações de 26% e as ações a representarem cerca de 6%. Na Europa, os empréstimos representaram 60%, as obrigações cerca de 31% e as ações representaram cerca de 8%. Uma explicação poderia ser a exclusão das instituições financeiras e das empresas do sector imobiliário desta análise.”

Parte IV texto 1 7

 

(continua)

Finance Watch, A missed opportunity to revive “boring” finance? A position paper on the long term financing initiative,  good securitisation and securities financing. Texto disponível em: http://www.finance-watch.org/press/press-releases/995fwposition-paper-on-ltf-securitisation-and-securities-financing

 

Notas

[14] European Commission, Final report of the High-level Expert Group on reforming the structure of the EU banking sector (Liikanen Report), 2 October 2012.

[15] Deloitte, Capital gain, asset loss, European bank deleveraging. The Deloitte Bank Survey 2012, 2012.

[16]  European Commission, Staff Working Document Economic Review of the Financial Regulation Agenda (SWD(2014) 158 final), 15 May 2014e.

[17]  Financial Times money supply blog, Jones, C., TLTRO: how well has the ECB targeted its loans?, 3 July 2014.

[18] BIS, Takáts, E. and Upper, C., Working Paper 416, Credit and growth after financial crises, 2013c.

[19]  Daily Telegraph, Wilson, H., Handelsbanken is championing an old way of doing new UK business, 24 August 2013.

[20]  BIS, Roengpitya, R., Tarashev, N. and Tsatsaronis, K., Bank business models, BIS Quaterly Review,  December 2014e, pp. 55-65.

[21]  ESRB, Reports of the Advisory Scientific Committee No. 4, Is Europe Overbanked?, 2014a

[22]  ESMA, EIOPA and EBA, Joint Committee Report on Risks and Vulnerabilities in the EU Financial System, 2014; Financial Times, Thompson, C. and Hope, K., Greek bank borrowing costs fall, 24 April 2014; Financial Times, Thompson C., Ross A., EU banks binge on capital to avoid stress test failure, 6 May 2014

[23]  “It does not follow per se that rules that limit the ability of banks to use short-term funding in this way translate into reduced lending for the real economy.” European Commission, Green Paper Long-term financing of the European economy (COM(2013) 150 final), 25 March 2013b.

[24]  The cumulative cost impact of the liquidity ratios is expected to be between 16 bps (IMF, BIS, EC) and 80 bps (ECB) according to ESBG, Economic demonstration of the economic impact of liquidity ratios in particular for SME lending, January 2014

[25]  “Banks will always tend to replace SME loans by other more profitable or less risky assets.” ESBG 2014.

[26]  “The average regulatory capital requirement for corporate loans is 4.7%, more than 10 times higher than the 0.4% requirement on sovereign debt.” Fondation Robert Schuman, European Issue n°307 Investment in and the financing of the European Economy, March 2014

[27] BIS, Basel Committee on Banking Supervision, Consultative Document, Basel III: The Net Stable Funding Ratio, 2014a

[28]  RBS Credit Research, The Silver Bullet | Basel: steering (again) in the wrong direction, 13 January 2014.

[29]  BIS 2014b.

[30]  EBF, Proskurovska, V., European banking sector facts and figures 2012, 2012.

[31] ESBG, ESBG Response to the Green Paper on the Long-Term Financing of the European Economy, 2013.

[32]  Allen & Overy, Corporate funding monitor: the changing face of finance, 2014.

 

 

 

 

 

Leave a Reply