
Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
Parte IV – A titularização como meio para continuar na trajetória da crise
1. Uma oportunidade falhada de restabelecer a finança não-criativa, a finança segura, a finança sã – uma análise sobre a Iniciativa de Financiamento a Longo Prazo da União Europeia (18ª parte – Anexo parte 3)
Por Finance Watch, em 15 de dezembro de 2014
Autor: Frédéric Hache. Editor: Greg Ford
(18ª parte – Anexo parte 3)
ANEXO: Sobre o papel central das garantias e do financiamento de títulos
(…)
3. “Uma importante fonte de risco não endereçado”
As transações de financiamento de títulos foram identificadas simultaneamente como um fator chave da crise financeira e como uma “importante fonte de risco não endereçado” no nosso sistema financeiro [289].
É importante distinguir entre os riscos colocados às instituições individualmente e os riscos sistémicos. “Desde uma perspetiva micro-prudencial, as transações de financiamento de títulos têm um baixo risco, uma vez que o empréstimo é de curto prazo, com reforço de garantia, avaliado diariamente a preços de mercado e sujeito a requisitos quanto às margens” [290]. Contudo, ao nível do sistema financeiro elas criam riscos importantes que abrangem bancos e não-bancos. Alguns destes riscos foram já descritos na parte sobre financiamento por grosso e desenvolveremos esses aspetos aqui.
Em primeiro lugar, como analisado as transações de financiamento de títulos aumentam a pró-ciclicidade da alavancagem do sistema [291]. Frequentemente é assumido que o financiamento bancário provém na sua maior parte dos depósitos pelo que é relativamente estável ou “aderente” [292], uma vez que a quantidade de depósitos não varia muito. Todavia, o financiamento que os bancos e os fundos hedge recebem via transações de financiamento de títulos varia significativamente de um modo pró-cíclico através de vários canais: quando os mercados sobem e a apetência de risco é elevada, os investidores estão dispostos a aceitar mais ativos como garantia, tesouradas [293] e requisitos de margem diminuam desde que aumentem o financiamento contra determinados ativos, o valor de mercado dos ativos de garantia e a velocidade da garantia. Tudo isto permite aos bancos obterem mais e mais financiamento contra um dado conjunto de ativos nos tempos de bonança. Todavia, simetricamente, quando os mercados viram e os investidores começam a ficar preocupados, ocorre o inverso, com os investidores repentinamente a recusarem como garantia ativos de mais baixa qualidade, exigindo maiores tesouradas e margens, com o valor de mercado dos ativos de garantia a descer e as cadeias de garantias a contraírem-se. Dado que o financiamento é utilizado para fornecer empréstimos e fazer investimentos, o financiamento adicional dos tempos de bonança aumenta a alavancagem do sistema, enquanto a retira desse financiamento nos maus tempos reduz a alavancagem.
Esta alavancagem adicional está, por conseguinte, diretamente relacionada com os níveis de financiamento, flutuando com os valores dos ativos e a sua volatilidade, e é deste modo altamente pró-cílcica.
Por conseguinte, embora a crescente dependência do financiamento colateralizado atenue, para o financiador, o risco da contraparte por comparação com o financiamento não seguro, essa dependência adiciona-se drasticamente à pró-ciclicidade do sistema financeiro, quando a disponibilidade do financiamento e respetivo sistema de alavancagem se expandem ou contraem em consonância com a expetativa do mercado. Pode também transformar, quase de um dia para outro, problemas de liquidez em problemas de solvência [294].
Sendo os mercados financeiros notoriamente instáveis e propensos a alterarem o seu comportamento passando de uma exuberância irracional a repentinos acessos de medo e aversão ao risco, esta fonte de financiamento acrescenta elasticidade ao sistema financeiro e aumenta a sua vulnerabilidade a choques financeiros. De facto, “o excesso de elasticidade do sistema monetário e financeiro” foi considerado o principal fator determinante da crise financeira [295].
É igualmente interessante notar que as transações de financiamento de títulos equivalem à criação de dinheiro, com as tesouradas a desempenharem o papel de rácios de reserva definidos pró-ciclicamente pelas instituições financeiras. Como diz Singh “as garantias são como dinheiro de alta potência, em que as tesouradas são equivalentes aos rácios de reserva, e o número de reutilizações (a ‘extensão’ da cadeia das garantias) é equivalente ao multiplicador monetário” [296]. De alta potência porque as garantias reutilizadas mostraram terem uma velocidade superior à da moeda. Considerando que a criação tradicional de dinheiro (notas e moedas) e a criação de dinheiro pelos bancos são ambas monitorizadas e sujeitas a restrições pelo banco central, tais como requisitos de reserva, a criação de dinheiro via transações de financiamento de títulos não é monitorizada nem sujeita a restrições; os bancos centrais podem influenciar apenas em parte a quantidade de garantias no sistema através da sua compra e venda e através da alteração do enquadramento que dão às garantias (ou seja, que tipo de garantias aceitam). Por conseguinte, é uma forma de criação de dinheiro auto-regulada pela indústria financeira. Isto suscita a questão de se as tesouradas, os requisitos de margem e a extensão das cadeias das garantias devem permanecer elásticas, com ninguém da indústria disposto, de sua livre vontade, “a retirar a taça do ponche precisamente quando a festa vai começar” [297], ou se deviam serem tornadas estáveis como os rácios de reserva dos bancos. De facto, tem sido argumentado que o crescimento de passivos não essenciais – quando os bancos aumentam a sua dependência do financiamento de títulos durante o boom de créditos para aumentarem a sua alavancagem – é um sinal de um excessivo crescimento de ativos numa situação de boom de empréstimos [298].
Em segundo lugar, as transações de financiamento de títulos aumentam a interconectividade do sistema financeiro, outro importante risco sistémico. Como disse o ex-vice presidente do Credit Suisse, Urs Rohner, “a realidade a nível internacional mostra que o verdadeiro tema central não é o «demasiado grandes para falirem», mas antes «demasiado interconectados para falirem»” [299]. Apesar do declínio do seu pico em 2009, a interconectividade global permanece tão elevada quanto a contrapartida de 24% dos ativos bancários da eurozona equivale a uma nova área bancária do euro [300].
O financiamento de títulos aumenta a interconectividade dado que as cadeias de garantias criadas pelas transações de financiamento de títulos aumenta a rede de contratos e riscos de contágio entre entidades no sistema financeiro, e consequentemente aumenta a vulnerabilidade aos choques.
As recentes tendências para tratar a escassez de garantias percecionada, como o aumento da reutilização de garantias e a transformação de garantias, muito provavelmente aumentarão ainda mais a interconectividade [301].
Em terceiro lugar, conforme analisado, as operações de financiamento de títulos aumentam o risco de vendas ao desbarato de títulos com garantia e externalidades negativas correlacionadas. Uma venda ao desbarato é a venda forçada de um ativo, situação em que o vendedor não consegue pagar aos seus credores senão vendendo ativos. Somente cria externalidades negativas e justifica uma intervenção regulamentadora se a venda ao desbarato atinge alguém mais do que a parte que vende o ativo.
No caso do financiamento de títulos, tomemos o exemplo do fundo hedge A que adquiriu um título e financiou essa compra principalmente através da venda desse título durante a noite como garantia. Se o preço do título diminui, o fundo hedge poderá não ter a capacidade para cumprir as exigências de reforço da margem e seja forçado a vender o título. O fundo hedge B que concedeu um empréstimo ao fundo hedge A está praticamente seguro de que não será afetado dado que detém o título como garantia e valor de cobertura adicional diária para ajustar o montante da sua garantia. Contudo, como a venda do título deprime ainda mais o seu preço, reduz a capacidade de outros fundos C e D que detêm o mesmo título contra o qual podem obter empréstimos, e podem forçá-los a, involuntariamente, venderem igualmente as suas posições, alimentando ainda mais a espiral descendente de preços. Nesta situação, um contrato entre os fundos A e B tem, tipicamente, efeitos colaterais sobre outros participantes do mercado não envolvidos na transação [302].
As vendas ao desbarato de títulos garantidos podem ser causadas por muitos fatores, nomeadamente um declínio inicial do valor da garantia ou um aumento da sua volatilidade que conduz a um aumento das tesouradas. Também podem ser provocadas por dúvidas quanto à fiabilidade creditícia de um corretor fornecedor usando operações de financiamento de títulos para o seu próprio financiamento ou dos seus clientes, ou por fundos de mercados monetários com um valor constante de património líquido por receio de uma fuga dos seus depositantes. A recente crise proporcionou amplos exemplos de vendas ao desbarato quando a confiança no valor dos ativos usados como garantia colapsou, conduzindo a fugas no mercado por grosso, e efetivamente a crise iniciou-se com a liquidação de passivos de emitentes de papel comercial garantido por ativos [303].
Vendas ao desbarato de ativos e liquidação de passivos são um elemento essencial da pró-ciclicidade desta fonte de financiamento. Estes riscos podem ser também agravados por vários elementos:
- A muito alta alavancagem nas transações Repo, em que um grande número de tomadores de empréstimos financiam os mesmos títulos com uma muito alta alavancagem, na ordem de vinte-para-um a cinquenta-para-um ou mais elevado [304], aumenta significativamente o risco de que as dificuldades de um tomador de empréstimos, e respetiva pressão à baixa sobre o preço, causarão uma maior restritividade de garantias sobre outros tomadores de empréstimos.
- Efeitos abruptos [305], quando grandes alterações repentinas na valorização de garantias ou acordos de compensação que não são legalmente aplicáveis criam um repentino risco de contraparte para o tomador de empréstimo que não está coberto pela garantia.
- Uma “competição desenfreada de maturidades” em que os credores encurtam a maturidade do empréstimo para se retirarem rapidamente em vez de prestarem atenção à recuperação do valor dos ativos.
- Segundas hipotecas sobre ativos não sujeitos a reserva de propriedade, quando os clientes têm dúvidas sobre até que ponto os seus ativos foram re-hipotecados ou sobre a sua capacidade de os recuperarem em caso de bancarrota, e começam a ter dúvidas sobre a solvabilidade ou a fiabilidade creditícia do seu principal corretor.
- Inadequadas práticas de valorização de garantias, quando o valor dos ativos usados como garantia não é atualizado ou é incorreto, levando a surpreendentes perdas deteriorando a confiança do mercado.
- O fantasma da liquidez [306]/excessiva transformação de liquidez: quanto mais os ativos usados como garantia assentam em créditos ilíquidos que foram “transformados” ou em ativos de baixa qualidade, mais elevados são os riscos de que os credores repentinamente deixem de os aceitar como garantia elegível quando a confiança declina.
A crescente dependência do mercado por grosso nos anos que precederam a crise transformaram a indústria financeira numa indústria altamente vulnerável às fugas massivas [307]. Dado que uma elevada dependência do financiamento de títulos enfraquece a estrutura de financiamento da instituição financeira, tornando-a mais vulnerável a fugas no mercado por grosso, esta vulnerabilidade é especialmente problemática no caso de grandes instituições financeiras sistémicas e é, por conseguinte, parte do problema “demasiado grande para poder falir”. A relação entre grandes empresas e a banca sombra significa que as tensões nos mercados de financiamento por grosso podem refletir e ampliar o problema do “demasiado grande para poder falir”. Tarullo, governador da Reserva Federal, reconheceu recentemente que “a área que necessita ser mais trabalhada é a do tratamento dos riscos decorrentes da utilização de financiamento por grosso de curto prazo por empresas sistemicamente importantes” e defendeu que “há fortes razões para dar passos [em relação às instituições sistemicamente importantes] para lá de quaisquer medidas de aplicação genérica que sejam eventualmente aplicadas às transações de financiamento de títulos ou ao financiamento por grosso de curto prazo mais em geral.”
Se bem que quanto ao tema do “demasiado grande para poder falir”, a concentração é também um problema sério ligado às transações de financiamento de títulos, com somente 14 bancos ativos na gestão de ativos de garantia a nível mundial, conforme foi identificado pelo FMI [308].
Diga-se de passagem que, como os grandes bancos sistémicos estão tão dependentes do financiamento por grosso, as medidas visando a internalização das externalidades negativas das operações de financiamento de títulos, tais como a taxa Pigouvian [309], restringiriam a sua utilização e deveriam, por conseguinte, reduzir mecanicamente a dimensão destas instituições. A este respeito poder-se-á argumentar que restringindo a utilização do financiamento de títulos seria um instrumento eficaz e complementar para tratar do problema “demasiado grande para poder falir”, pelo fortalecimento da estrutura de financiamento destas instituições e pela redução da sua importância sistémica e em dimensão.
Finalmente, as externalidades negativas ligadas às transações de financiamento de títulos incluem o risco moral, o enfraquecimento dos esquemas de garantia de depósitos e a reduzida eficácia das medidas de resgate interno das instituições. Primeiramente, tem sido argumentado convictamente que “os intervenientes não-bancários essenciais, devido à sua interconectividade com os bancos corretores podem (novamente) beneficiar do apoio do contribuinte durante a próxima crise financeira (…) As fugas massivas dos clientes de corretagem principal (tipicamente os fundos hedge), solicitando o retorno das suas garantias, foram uma fonte importante de instabilidade para os bancos corretores em 2008 (nomeadamente todos os bancos de investimento autónomos dos EUA, tais como Bear Stearns, Lehman Brothers e Merrill Lynch), levando em última instância a grandes medidas de apoio do banco central e do governo” [310].
Quanto ao segundo ponto, um recente documento de reflexão do BIS considerava que a crescente dependência do financiamento coberto por garantias, ao aumentarem a quota dos ativos que estão hipotecados dos bancos, “pode afetar adversamente os créditos residuais de credores sem garantia durante a resolução da falência do banco, aumentar os riscos dos esquemas de garantia de depósitos e reduzir a eficácia das políticas destinadas ao resgate interno” [311].
(continua)
Finance Watch, A missed opportunity to revive “boring” finance? A position paper on the long term financing initiative, good securitisation and securities financing. Texto disponível em: http://www.finance-watch.org/press/press-releases/995fwposition-paper-on-ltf-securitisation-and-securities-financing
Notas
[289] Governor Daniel Tarullo, quoted in Singh 2013
[290] Tarullo 2013a
[291] Financial Stability Board, Strengthening Oversight and Regulation of Shadow Banking – Policy Framework for Addressng Shadow Banking Risks in Securities Lending and Repos, 29 August 2013
[292] IMF 2011c
[293] Uma tesourada é um desconto aplicado ao valor de mercado de um ativo usado como garantia, destinado a funcionar como almofada ou amortecedor no caso de o valor de mercado da garantia diminuir durante o período da transação. Por exemplo um ativo de €1000 com uma tesourada de 10% pode ser utilizado para se obter um empréstimo de €900. Se a volatilidade do ativo aumentar, ou seja, o risco de que o declínio do seu valor aumente, o financiador poderá aumentar a tesourada quando o empréstimo for renovado, digamos para 20%, o que significa que o financiamento que pode ser obtido contra esta garantia diminuirá de €900 para €800. Os requisitos de margem são similares para as transações de derivados.
[294] Tarullo 2013a
[295] BIS, Borio, C. and Disyatat, P., BIS Working Papers No. 346, Global imbalances and the financial crisis: Link or no link?, 2011b
[296] Singh 2013
[297] De acordo com a famosa expressão do antigo presidente da Reserva Federal, William McChesney Martin.
[298] Song Shin, H., Policy Memo Macroprudential Policies Beyond Basel III, Princeton University, 22 November 2010
[299] Businessweek, Onaran, Y., JPGoldman Stanley Intact as Basel Change Keeps Bank Ties, 21 April 2014
[300] European Commission, Staff Working Document European Financial Stability and Integration Report 2013 (SWD(2014) 170), 28 April 2014d
[301] BIS 2013b
[302] Exemplo pedido de empréstimo de um excelente discurso do governador federal de Nova Yorque, Stein : Securitization, shadow banking & financial fragility (see Stein 2010)
[303] Federal Reserve Bank of New York 2012a
[304] Uma alavancagem de 50-para-1 significa que uma entidade que adquiriu um título de €100 o fez com €2 do seu dinheiro e €98 de empréstimo obtido contra este título, ou seja, uma tesourada de 2%. Se o título diminuir o seu valor só mais um bocadinho, a tesourada aumentará quando o tomador do empréstimo quiser renovar o empréstimo, o que significa que o tomador do empréstimo não conseguirá novamente obter €98 de mepréstimo e necessitará arranjar outras fontes de financiamento para cobrir a diferença. Se não conseguir financiamento adicional poderá ser forçado a vender o título. Ver Stein, J.C., Speech, The Fire-Sales Problem and Securities Financing Transactions, 7 November 2013
[305] Financial Stability Board 2013
[306] “Este ‘fantasma da liquidez’ diz respeito à liquidez fornecida ao mercado à conta de práticas de risco potencialmente sistémicas. Por exemplo, antes da crise os corretores podiam agrupar obrigações ilíquidas em produtos de dívida estruturados tais como obrigações de dívida garantidas, um movimento que ajudou a ampliar a crise financeira”. Ver IOSCO 2014
[307] Tarullo 2013a
[308] Financial Times, Gangahar, A., Default protection: Collateral management grows in strength, 19 September 2014
[309] Taxa aplicada a atividades geradoras de externalidades negativas, ou seja, que afetam outras entidades que não estão envolvidas nessas atividades.
[310] Singh 2013
[311] BIS 2013b