A crítica demolidora de Michael Pettis à teoria e à política económica neoliberal – 13. Fundamentos da Teoria Económica  – Nota 2. Por Wolfgang Stützel (com comentários de Júlio Marques Mota)   

egoista

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

13. Fundamentos da Teoria Económica (extrato de “Zins, Kredit und Produktion”) – Nota 2 (*) de Wolfgang Stützel (com comentários de Júlio Marques Mota)

Stutzel Wolfgang por Wolfgang Stützel, em 1952(**)

 

O texto em cada enquadrado é o comentário sobre os parágrafos que o antecedem.

 

11) Nesta forma concisa esta tese parece à primeira vista equivalente a uma já muito velha questão: quem é que surge primeiro, o ovo ou a galinha? Para uma formulação semelhante, veja-se: Erich Schneider, Introdução à Teoria Económica, vol. I, Tübingen 1948, p.57).

Comentário

Trata-se de saber ou de não se saber se é a poupança que gera o investimento ou é o investimento que gera aumento de rendimento e é o aumento de rendimento que gera então a poupança. E isto não é redutível à questão de quem é que surgiu primeiro, se o ovo se a galinha.

É isso que o autor está a analisar e este autor não é Lautenbach, é Stutzel, um dos maiores expoentes alemães dos anos 50 e 60 na Alemanha e que é o responsável pela compilação dos textos de Lautenbach.

Lautenbach e é esse o seu grande contributo diz: é o investimento que gera a poupança. Mas isso é contra toda a lógica neoliberal. Basta lembrar a Troika.

 

Também se poderia facilmente considerar a afirmação de Lautenbach como uma trivialidade, mas avançar por esta via como resposta às teses de Lautenbach poderia levar-nos ao absurdo de considerarmos que todos os homens cujo primeiro nome seja Felix tomariam o lugar dos empresários no modelo de Lautenbach e que em vez dos não empresários seriam no mesmo modelo considerados todos os outros atores da economia que não estes.

Comentário

A afirmação de Lautenbach como trivial. Uma trivialidade significará aqui algo conhecido de todos. É mentira. É mentira que a afirmação seja conhecida de todos os economistas. Será a primeira vez na história que alguém inverte com este rigor a relação de S (poupança) a gerar o Investimento (I), para o seu contrário, ou seja, em que se considera a causalidade inversa. Dito de outra forma, Lautenbach considera que a realização de I, provoca aumento de rendimentos que, por sua vez, provoca aumento da poupança e, sendo assim, é o investimento que gera a poupança e não o inverso. ENCOMENDAR, porque não está feito, e comprar uma camisa ou um Ferrari com dinheiro que se tem não é a mesma coisa que ENCOMENDAR, porque não feita, e comprar uma máquina ferramenta, com o dinheiro que ainda não se tem, para com ela se produzir bens e serviços que são necessários, ou seja, para produzir rendimentos e poupanças como resultado do que se investiu. Investir significa aqui gerar produção, gerar rendimento que gera a poupança correspondente. São, pois, duas visões do mundo e diametralmente opostas.

Stutzel leva a sua ironia corrosiva ao limite. Assim, diz-nos ele, considerar a afirmação de Lautenbach uma banalidade é tão absurdo como considerar no seu modelo económico em que a sociedade está dividida em classes, que os cidadãos de nome Felix, façam o que fizerem, passam a ser os CAPITALISTAS e toda a população restante passa a constituir os seus trabalhadores!!!! Um absurdo monstruoso, é o que é pensar desta maneira, pensar como Erich Schneider, que a afirmação de Lautenbach é pura e simplesmente uma trivialidade. No fundo considerar a questão como uma banalidade, o que faz Schneider, é não perceber nada, nada mesmo, quanto à dinâmica do capitalismo ou, no fundo, o equivalente a considerar qualquer homem com o nome Félix do país como empresário….  E a considerar toda a população restante como sendo os operários, o mesmo é dizer em que a maioria dos patrões, salvo os que se possam chamar-se Félix, serão relegados ao estatuto de operários. Uma equivalência no absurdo.

 

Se considerarmos que o rendimento dos restantes evolui a pari e passu com a produção, então somente os “Felizes” precisam de globalmente gastar mais e atingirão rendimentos mais elevados. E isto é o que se passa na verdade com os empresários. Mas estes também irão, assim, alcançar rendimentos mais elevados.

Comentário

Presumo, os restantes, os que não se chamam Félix, são os que não são empresários. Ganham de acordo com o que trabalham e os seus rendimentos evoluem com o que produzem. Restam-nos os felizes, os patrões. Podem à partida imputar na despesa o seu salário que eles mesmo estipulam e antes de gerarem os rendimentos correspondentes. Podem, pois, gastar antes de produzir. Felizes até nisto. Daí a frase famosa de um autor, reconhecidamente tão importante como Keynes, que se chama Kalecky: os operários gastam o ganham, os patrões ganham o que gastam, agora sob a forma de lucros. Se os nossos Felizes gastarem mais, produzem mais, ganham MAIS, eis o que está no texto.

 

Agora, qual é a posição muito especial dos empresários. Qual é a finalidade das proposições especiais de Lautenbach? O que significa a frase: “Os empresários sabem apenas pelo mercado quanto ganharam, sabem pelo mercado quanto é o montante de lucros por eles obtidos?” Não estarão os rendimentos (os salários) dos não-empresários no curto prazo, assim como a ´determinação política dos salários a longo prazo, ligados à situação de mercado? Mas uma vez que as últimas teses apresentadas por Lautenbach têm a ver com as exigências “assimétricas” da teoria do emprego (a utilização de capital antes da formação de capital, o acréscimo na procura antes do aumento da oferta, etc.) e, por vezes, sobre a utilização de forma acrítica de equações (“simultâneas”) para descrever a atividade económica que pode levar a falsas ideias sobre a natureza das variáveis contidas nesses sistemas, sobre o que está a ser analisado, talvez tudo isto esteja a merecer ou a exigir mesmo uma análise mais detalhada.

Comentário

Aqui de novo um ataque de fundo à teoria económica dominante. Segundo esta os salários e os lucros são dados pelas condições técnicas, independentemente dos mercados. Um economista neoliberal dir-te-ia: o salário é determinado pela produtividade marginal, ou seja, pelas condições técnicas de produção, como se não houvesse mercado! Não são pois necessários sindicatos para negociar o salário. Um engenheiro, uma função de produção, uma certa capacidade de cálculo, chegam para isso, consideram os neoliberais!

Em Lautenbach os salários estão estabelecidos por contrato, os lucros são a VARIÁVEL RESIDUAL, estabelecida pósvenda da produção, estabelecida pelo mercado. O drama de hoje é que o neoliberalismo quer forçar a realidade a ser o inverso do que ela estruturalmente é, ou seja, querem funcionar como se o salário seja a variável residual. Daí a existência de comissões e outros prémios, daí a perda de importância do salário fixo, cada vez relativamente menor, etc.

Segundo Lautenbach e Stutzel passa-se o contrário do que nos dizem os neoliberais quanto ao mercado de trabalho. O salário é determinado NUM MERCADO BEM ESPECIAL, o do confronto entre patrões e empregados, é fixado antes da produção ser feita, sob a forma de contratos de trabalho. Diríamos então o salário é a variável independente: em cada país e em cada momento depende do confronto de classes. E os lucros só são determináveis pós venda, é o que ele nos diz. Os custos de remuneração pessoais dos capitalistas entram nos custos de produção tal como os salários dos seus trabalhadores.

 

Imaginemos um modelo de ciclo de negócios em que, em dado período cada grupo obtém tanto como remuneração como aquilo com que contribui para a formação do rendimento nacional. Então, por si só, esta afirmação pode já significar que a receita total é igual à despesa total.

Comentário

Impressionante o texto acima. Não há crescimento e em equilíbrio tudo o que foi produzido foi vendido. Em Ricardo chama-se estado estacionário, em Marx significaria Reprodução Simples. Aqui, vendeu-se, obtiveram-se receitas – comprou-se fizeram-se despesas. A despesa igual à produção, igual aos Rendimentos Gastos=PIB=Produção=Rendimentos obtidos.

 

É claro, o número de trabalhadores e o PIB poderão aumentar hipoteticamente com a redução simultânea dos salários unitários e com o aumento do número de trabalhadores de tal modo que se mantém constante os rendimentos salariais totais e a despesa total de todos os trabalhadores envolvidos na produção. (ver. Pag 126). A hipótese da igualdade entre as receitas e as despesas dos empresários no período de tempo considerado exige, contudo, um acréscimo do produto total e que é igual ao montante da redução salarial. Contudo, uma tal igualdade entre receitas e despesas dos empresários nunca pode ser alcançada no decorrer de um processo sequencial livre. Pelo contrário, depois da redução dos salários, as empresas procuram em primeiro lugar obter lucros a partir das novas contratações [e a partir daí, se não houver outras causas para mudanças na relação despesas/receitas dos empresários, caminhar-se para um novo estádio estacionário, nessa longa “espiral do tempo”. No fundo, temos aqui os “animal spirits” de Joan Robinson, – ou seja o otimismo dos empresários a poderem contrair empréstimos e a gastar hoje, os rendimentos esperados com a venda da produção depois de amanhã.].

 

Comentário

Aqui temos a tese defendida por Lautenbach na conferência de setembro de 1931. Se os salários unitários baixam, para a mesma despesa global em salários terão de aumentar o número de trabalhadores. A despesa total dos trabalhadores permanece constante. No livro veja-se isso na pag 126.

Mas se há baixa salarial por unidade de trabalho, os mesmos trabalhadores que trabalhavam antes vão dar mais lucros. Como os salários baixam os empresários aumentam o volume de emprego. Ganham a dois níveis: pagam menos por dia de trabalho e ganham; empregam mais gente e ganham. Há pois mais produção, mais lucros e mais despesa depois dos empresários, nem que seja por antecipação da realização dos seus lucros! E assim se escoa a produção, e assim se torna a encontrar a igualdade Receitas totais=Despesas Totais= Produção total.

Porém, aqui cruzamo-nos com Ricardo e com Marx, com o problema da reprodução simples em Marx, com a situação de estado estacionário em Ricardo! Não basta baixar os salários. É preciso dinamizar a procura e esta dinamização pode aqui surgir via empresários, via o seu consumo, no caso possível pelos lucros adicionais esperados e procurados com a baixa dos salários. Mas os lucros são realizados, obtidos em cash, com a produção vendida e para que a produção seja vendida é preciso que aumente a procura. Vindo de onde, este aumento da procura? De forma imediata, pelo aumento da despesa feita a partir da antecipação de lucros esperados! Um espanto, este texto escrito nos anos 30.

 

É apenas no sentido de determinar qual o interesse, isolando de tudo o resto, dos empresários em expandir a sua produção que Lautenbach coloca a hipótese de massa salarial constante em simultâneo com o aumento dos trabalhadores utilizados. Seria errado supor que a hipótese de massa salarial constante é uma condição necessária para a sua ideia de base ou uma condição a partir da qual se poderia considerar que a política das centrais sindicais era responsável por todo este keynesianismo (veja-se As Hahn Ordo II, p. 187 and Jb.f. Nationalök und Statistik, vol. 162, p. 34).

Comentário

Há portanto, com tudo o resto constante, crescimento se os empresários tiverem apetência por um maior consumo ao longo do ciclo, por exemplo de 5 anos, em que as igualdades acima se verificam Despesa=Produção=Rendimentos. Mas não é uma necessidade do modelo de Lautenbach. Ele escreve-a somente por causa do medo terrível que os alemães tinham de que o aumento da procura pelo aumento dos salários pudesse desencadear uma hiperinflação! Analisa a outra hipótese, a da massa global dos salários e procura-se uma explicação possível para o CRESCIMENTO.

Através da livre formação de salários nada de fundamental é alterado. Mesmo “os rendimentos salariais” não trazem nada de novo, mas apenas parcialmente iriam envolver os assalariados no problema da determinação dos lucros empresariais aqui discutido. A condição de igualdade entre a receita total e a despesa total dentro do período em análise é muitas vezes referida como o ” equilíbrio do ciclo “, (ver p. 203). Também Keynes com o seu famoso “equilíbrio de subemprego” está a considerar um dado “equilíbrio no ciclo”.

Comentário

Na frase “A condição de igualdade entre a receita total e a despesa total dentro do período em análise é muitas vezes referida como o ‘equilíbrio do ciclo’ “, Lautenbach refere-se não a um ponto do tempo mas a um período de ciclo de 5-10 anos, sendo para ele certo que os diversos momentos do tempo e do ciclo se articulam entre si. E o problema que ele quer tratar é o da determinação dos lucros que SÓ SURGEM PÓS-VENDA das produções.

 

Pode-se tratar de um “desequilíbrio” associado aos preços no mercado de trabalho (desemprego involuntário): às taxas salariais existentes, a procura de empregos é maior que a oferta. No entanto, consideramos a expressão equilíbrio como inadequada, porque com esta expressão, e como mostra a controvérsia (z. B. Hahn, Ordo II. 175), a ideia de estabilidade, de duração, até mesmo de preço de equilíbrio, de equilíbrio equitativo, combina todo um conjunto de coisas que devem ser avaliadas especificamente e por referência a uma anterior posição de equilíbrio, o que está longe de ser aceite.

Tudo isto já não precisa de ser aqui mais discutido. O que agora e aqui é decisivo, é o seguinte: não há nenhum tipo de política monetária sob a condição de igualdade de receitas e despesas no período entre todos os grupos, que faça com que a atividade económica mude seja o que for, pois esta não pode crescer, [por falta de estímulo da procura]! Um certo tipo de teoria da política económica está a começar a admitir que a política monetária tem uma influência direta sobre o nível de atividade económica.

Comentário

Qualquer de nós tem de sentir-se pequenino perante o texto acima relativamente aos pontos de vista de Lautenbach.

Sublinhe-se o excerto seguinte:

“Tudo isto já não precisa de ser aqui mais discutido. O que agora e aqui é decisivo, é o seguinte: não há nenhum tipo de política monetária sob a condição de igualdade de receitas e despesas no período entre todos os grupos, que faça com que a atividade económica mude seja o que for, pois esta não pode crescer, [por falta de estímulo da procura]!”

Isto, enquanto política económica, representa o contrário da política seguida na União Europeia desde que rebentou a crise.

Os nossos leitores que nos desculpem. Vale a pena reler o que afirmou Bernanke e que é claramente uma espécie de eco do que acabamos de citar, escrito nos anos 30 do século passado. Na sua conferência proferida no verão de 2012, o então Presidente do Federal Reserve dos EUA, Bernanke, afirmou, contra todo o establishment americano e europeu, TROIKA inclusive, portanto contra Draghi igualmente:

“Normalmente, as políticas monetária e orçamental são em primeiro lugar destinadas a promover um mais rápido ritmo na recuperação económica no curto prazo. E não se poderia esperar que venham a afectar de modo significativo o comportamento da economia e os seus resultados, a longo prazo. No entanto, as circunstâncias actuais podem ser consideradas uma exceção relativamente à ideia normalmente aceite – a excepção a que aludi anteriormente. A nossa economia está a sofrer hoje de um nível extraordinariamente elevado de desemprego de longa duração, com quase metade da dos desempregados a estarem nesta situação há mais de seis meses. Sob estas circunstâncias claramente fora do comum, as políticas que promovam uma recuperação mais forte no curto prazo podem servir também os objetivos de longo prazo. No curto prazo, colocar as pessoas de volta ao trabalho significa reduzir as grandes e duras dificuldades infligidas pelos difíceis tempos que a economia atravessa e ajuda a garantir que a nossa economia venha a estar a produzir ao nível do PIB potencial em vez de estar a deixar por utilizar os nossos recursos produtivos. No longo prazo, com a minimização da duração do desempego apoia-se a criação de uma economia saudável evitando-se, por isso mesmo, alguma erosão das capacidades e dos saberes assim como se evita a perda da inserção do trabalhador no trabalho e na sociedade, perda esta que está frequentemente associada ao desemprego de longa duração.

Não obstante esta observação, que aumenta a urgência para a necessidade de alcançar uma recuperação cíclica do desemprego, a maioria das políticas económicas que sustentam uma taxa de forte crescimento económico sustentado no longo prazo estão fora do alcance do banco central. Nós temos estado agora a assistir a grandes discussões sobre a política fiscal federal nos Estados Unidos, por isso vou fechar com algumas ideias sobre o assunto, centrando a nossa atenção no papel da política orçamental na promoção da estabilidade e do crescimento. (…)

Felizmente, os dois objetivos que são o de alcançar a sustentabilidade orçamental – que é o resultado de políticas responsáveis postas em prática e em termos de longo prazo – e o de evitar a criação dos ventos orçamentais contrários à recuperação económica, estes dois objetivos não são incompatíveis. Agir agora para por em prática um plano que assegure a redução dos défices a longo prazo, ao mesmo tempo que se está atento às implicações das escolhas orçamentais para a recuperação a curto prazo, pode ajudar a servir ambos os objetivos.

Os decisores das políticas orçamentais também podem promover um mais forte desempenho económico através da conceção de políticas fiscais e de programas de despesa pública. Na medida do máximo que lhes for possível, as nossas políticas fiscais e das despesas devem levar a que se aumentem os incentivos para trabalhar e para poupar, devem incentivar os investimentos na formação e no aumento das capacidades da nossa força de trabalho, devem estimular a formação de capital privado, devem promover a investigação e desenvolvimento e devem igualmente fornecer as infra-estruturas públicas necessárias. Nós não podemos esperar que a nossa economia vá fazer a sua trajectória de crescimento a prazo para lá dos nossos desequilíbrios, mas uma economia mais produtiva facilitará a que se encontrem as linhas de compromisso possíveis que enfrentamos actualmente. (…)

Os decisores das políticas económicas enfrentam uma série de decisões difíceis, relacionadas com ambos os desafios que enfrentamos, os de curto e os de longo prazo.  Não tenho dúvidas, porém, que as respostas a estes desafios serão encontradas e que as forças fundamentais da nossa economia irão, finalmente, reafirmar-se.”

 

O senhor Draghi e o senhor Schauble deviam ler isto. Deviam ler também os alemães Lautenbach e Stutzel, respetivamente dos anos de 1930 e dos anos 50.

Não há política que nos salve se não há procura. Há aumento monetário, há descida das taxas de juro, mas isto não faz aumentar a procura, salvo se for para investimento! Mas vão investir para quê, se não há procura? No fundo o problema do penúltimo enquadrado. Sem mais nada só se houver ganância por mais consumo por parte da burguesia, só se houver introdução de projetos nacionais públicos que injetem procura no sistema, de bens de consumo e de bens de investimento, e esta injeção pode servir também de estímulo ao investimento privado.

Mas curiosamente o aumento do consumo da burguesia não resolve a questão se é feito, quando o é, se isso é acompanhado por uma redução igual ou superior do montante de salários.

 

Erradamente! Porque para mudar o nível de atividade económica (mudanças no nível geral de preços ou nas variações de volume das quantidades produzidas), estas mudanças só se podem verificar se não existe nenhuma igualdade entre despesas e receitas, qualquer que seja o ponto do período considerado! Para que uma tal mudança se verifique, é mesmo necessário que haja uma mudança temporária no rácio Despesa/receita para que haja, isso sim, uma variação no nível de atividade e não uma variação no volume dos fundos disponíveis.

Comentário

Se estivermos com Despesa=Produção= Receita sem aumento de existências, bom então nada vai mudar. Só uma variação na relação entre Despesa e Receitas pode fazer mexer o sistema que se desloca para um ponto do ciclo em que temos: mais rendimento=mais despesa= mais produção. Se houver mais despesa, rompe-se imediatamente a desigualdade e faz-se avançar o sistema, e este vai produzir mais. Ora nós temos andado a fazer o contrário. A cortar na despesa…. Um espanto este texto.

 

É certo que no estado de “rigidez do ciclo” (igualdade entre o rendimento total e a despesa total), o aumento da massa monetária pode ser neutralizado por uma variação na frequência da sua utilização [ou seja, por uma variação na sua velocidade de circulação], tanto quanto não é ainda permitido no nosso provisório “projeto experimental” induzir por iniciativa própria uma tal mudança no rácio entre as despesas e os rendimentos, ou seja uma mudança na proporção de receitas a despesas durante o período considerado. Esta exclusão de influência direta da política monetária sobre o nível de atividade é de novo metodicamente justificada; porque não se pode arbitrariamente “aumentar ou diminuir a massa monetária do sistema”. Primeiro, para que alguém retire dinheiro da circulação (colocando-o num cofre em casa ou colocando-o no banco) ou injete dinheiro na circulação, reduzindo a sua conta bancária ou contraindo empréstimos junto do banco terá de ter uma razão económica para o fazer. Primeiro que tudo esse alguém tem que ter uma razão para abandonar a igualdade entre as suas receitas e as suas despesas durante o período considerado e só então é que irá provocar a diminuição ou aumento da massa em circulação. Para mudar a posição no ciclo, o mesmo é dizer, para mudar o nível de atividade económica no ciclo é então necessário alterar a proporção de receitas e despesas durante o período e para isso é necessário ou um aumento do papel-moeda em circulação, cash, ou uma capacidade bancária suficiente para a liquidação necessária para se efetuarem as transações e aqui sim estamos perante já uma condição suficiente para mudar o nível de atividade do ciclo. Só se os meios de pagamento disponíveis não são suficientes, então os bancos devem agir em conformidade e aqui estamos perante mais uma condição necessária para a mudança no ciclo, condição esta que por si só não é suficiente. (ver. p.131 no original).

Comentário

Repare-se no texto acima de que reproduzo um excerto:

Primeiro, para que alguém retire dinheiro da circulação (colocando-o num cofre em casa ou colocando-o no banco) ou injete dinheiro na circulação, reduzindo a sua conta bancária ou contraindo empréstimos junto do banco, terá de ter uma razão económica para o fazer. Primeiro que tudo esse alguém tem que ter uma razão para abandonar a igualdade entre as suas receitas e as suas despesas durante o período considerado e só então é que irá provocar a diminuição ou aumento da massa em circulação.

Tem que haver uma razão económica para alterar a igualdade entre receitas e despesas. Se me dão razões para acreditar no futuro posso reduzir a minha conta bancária e aumentar a despesa, fazendo subir a proporção entre Despesas e Receitas: se me dão fundamentos para ter medo do futuro reduzo a minha despesa e aumento a minha conta bancária, reduzo a despesa, reduzo a proporção despesa/receitas. Podemos fazer o mesmo raciocínio colocando em vez do consumidor o empresário que quer consumir mais ou que tem medo do mercado e contrai a sua própria despesa ou reduz custos antecipadamente despedindo pessoal. Ora as condições económicas dependem também muito do contexto socio-político. A questão de fundo é como é que se ganha dinâmica económica, como é que se parte para uma via de crescimento. De certeza que não é contraindo a procura agregada.

 

Se quisermos saber como é que as contrações ou expansões do nível de atividade económica se podem gerar (ou, em razão de que forças é que o nível atual de atividade num dado momento está ao nível em que está) devemos então procurar primeiro responder às seguintes perguntas:

  1. Até que ponto devem ir as mudanças económicas na proporção de receitas e despesas durante o período considerado?
  2. Quais são as regularidades nestas mudanças?

A enumeração de todas as possibilidades em 1. traduzir-se-iam numa classificação de todas as componentes económicas possíveis.

Entre os não empresários uma qualquer mudança nos hábitos de poupança ou mesmo, por exemplo, uma mais rápida utilização dos seus rendimentos recebidos como salários no período de pagamento de salários poderia ser tomada em conta. Qualquer mudança na Administração Pública na relação entre a coleta das receitas e a utilização das mesmas, assim como com os bancos, deveriam ser tidos em conta como seria o caso se considerarmos as relações económicas externas, as operações de pagamentos internacionais fariam mudar a proporção entre as “receitas” face às “despesas”. E, no entanto, parece-nos adequado, por agora, ignorar estas mesmas mudanças. As mudanças dos não-empresários, por exemplo, porque estas são difíceis de enquadrar sob uma regra geral (ver, p 41 no original).

As mudanças ao nível do Estado, porque elas são, mais tarde, tratadas como mudanças especificas da atividade económica [deixemo-las de lado]. E as mudanças verificadas nos bancos, porque são apenas reflexo “de transações económicas de outros agentes ” ou são tão complicadas (ver p. 84), que são aqui referidas de forma rápida e serão mais tarde analisadas de forma adequada. Assim, as únicas mudanças que aqui retemos são as que apenas têm a ver com os empresários. Estas mudanças, estão para eles entre ” as mais típicas atitudes ” da sua atividade empresarial. Têm os meios.

Comentário

Os empresários têm os meios de gerar as mudanças que levam ao crescimento. Simples, portanto. Curiosamente veja-se o papel da banca comercial: correia de transmissão da economia real. A partir da banca, via crédito, os empresários podem dispor dos meios de romper a situação de estado estacionário acima falado. Podem dispor dos meios e dispõem da capacidade de os utilizar! Impressionante e nada a ver com a financeirização de agora.

 

Os empresários podem ser vistos como parceiros dos bancos comerciais em ambos os sentidos (aumento das despesas com empréstimos, redução das despesas pela formação de depósitos) enquanto os não empresários, por exemplo, estão muito limitados em qualquer dos sentidos citados, seja no sentido da expansão seja no da contração dos meios de pagamento. De qualquer das formas, a atividade bancária foi já considerada na apresentação do presente modelo embora sem lhe conferir nenhum comportamento deste tipo por razões de ordem metodológica.

Também a taxa de juro é aqui excluída, apesar do aumento na procura em relação aos rendimentos salariais (pela via do crédito). A redução dos custos no crédito e a redução da poupança [desentesouramento] influenciam a procura, daí que a mudança dos comportamentos individuais faça variar a relação fundamental entre os rendimentos auferidos e a despesa que caraterizam cada situação económica. Contudo, estes custos e rendimentos, no plano dos factos, teriam menos influência sobre essas variações de comportamentos do que a variação das expectativas isoladas analisadas antes. (ver p. 15). Além disso, sem igualmente precisar os elementos de que depende a procura de crédito, não assumindo aqui o empresário tomado individualmente, esta depende muito da variação da relação rendimentos recebidos, despesa efetuada.

Assim, podemos afirmar que a questão de fundo permanece e esta é a de se saber porque é que a procura do empresário requer que lhe seja dado este grau de liberdade e não – como parece à primeira vista mais correto – é esta liberdade conferida ao lucro empresarial. A resposta é simples. Como o objetivo de cada empresário é obter o máximo lucro, assume-se aqui que cada empresário individual está permanentemente nessas condições, as de maximização do seu lucro. A hipótese contrária da ineficiência do produtor, é pois completamente excluída por Lautenbach. Talvez as taxas de tributação exorbitantes num qualquer momento do ciclo requeiram uma forte expansão do nível de atividade para que se possa detetar essa possibilidade. Até aí, a rendimento dado, sublinhe-se, o nível de atividade económica depende fortemente do grau de liberdade assumido pela procura dos empresários.

Comentário

Aqui temos a síntese do que se disse antes:

Assim, podemos afirmar que a questão de fundo permanece e esta é a de se saber porque é que a procura do empresário requer que lhe seja dado este grau de liberdade e não é,  – como parece à primeira vista mais correto – este grau de liberdade conferido  ao lucro empresarial.

É a procura, deles, que está na dinâmica da produção que leva à existência de lucros e a liberdade de ação está então na PROCURA. Os lucros vêm depois, são a variável dependente de que se falou acima.

 

Que os preços devam ser tratados como uma função passiva, como um resultado, talvez isto torne mais claro, se considerarmos que o que nós queremos captar (compreender) numa imagem abstrata do ciclo de actividade económica  sendo esta, de facto, antes uma longa espiral estendendo-se ao longo do tempo, é que qualquer mudança na relação Rendimentos/Despesa, não pode ter qualquer efeito relativamente ao passado mas apenas, quando muito, em relação ao futuro, e assim  ter impacto [na posição no ciclo] através da utilização dos recursos disponíveis [e não utilizados].

Comentário

O parágrafo imediatamente acima foi o que mais trabalho nos deu a traduzir.

Desde a noção de equilíbrio da economia, equilíbrio à Marshall, dinâmica do equilíbrio pelas quantidades, ou à Walras, dinâmica do equilíbrio pelos preços, até esta noção fabulosa de que o longo prazo é uma interconexão de períodos de curto prazo, “esta longa espiral estendendo-se ao longo do tempo”, tudo isto passa por este parágrafo. E o longo prazo surge como o resultado da articulação de múltiplas situações de curto prazo. É a economia, como ciência, que aparece condensada neste parágrafo de muito difícil tradução.

Na linha do que se tem vindo a dizer sobre um texto dos anos 30, talvez valha a pena reproduzir um texto de 2017 e relativo à economia americana, escrito por Bill Mitchell e republicado na nossa série:

“A imposição de austeridade orçamental durante uma recessão amplia os custos de curto e de longo prazo.

É por isto que é uma perfeita loucura invocar cortes discricionários nos défices orçamentais em nome de alguma noção equivocada da equidade intergeracional (querer reduzir o peso da dívida para as crianças de hoje é uma ideia claramente absurda).

Assim, a austeridade orçamental garante que os nossos netos irão ter menores condições para terem um futuro relativamente melhor do que poderiam ter em caso contrário.

Os meus primeiros trabalhos em meados dos anos 1980 foram uma crítica aos argumentos do pensamento neoliberal dominante sobre a “taxa natural de desemprego”, que estava centrada no desenvolvimento do conceito de histerese.

Esta ideia de taxa natural de desemprego é semelhante à ideia de que nós somos o que temos sido.

Esta ideia do que significa verdadeiramente a taxa natural de desemprego é muito importante em economia porque com esta percepção se entende, se rejeita e se subverte a noção dominante de que o longo prazo é completamente independente do curto prazo.

Para o leigo, isso pode ser representado pela ideia de que procurar obter uma baixa taxa de inflação sem se ter em conta o desemprego que assim é criado, é a mesma coisa que estar a considerar que este desemprego criado pela politica anti-inflacionista não é um problema, porque no ‘longo prazo’ o desemprego estará sempre situado à “taxa natural”. É claro, esta ideia é um perfeito disparate.

A situação de longo prazo nunca é, portanto, independente da situação da procura agregada de curto prazo. Não há nenhum estado invariável de longo prazo que seja pura e simplesmente determinado pela oferta. A história é uma série de períodos de curto-prazo interligados (co-dependentes).

Estimulando o crescimento do produto agora, os governos também ajudam a aliviar os constrangimentos de longo prazo sobre o crescimento – o investimento é incentivado e os trabalhadores tornam-se mais móveis.

O problema é um problema composto, porque a oferta (potencial) da economia é influenciada pela trajetória assumida pela procura e quanto mais longa é uma recessão (ou seja, expressa aqui pela diferença entre o PIB potencial e o efetivo) mais os mecanismos de histerese da economia serão negativos.

A partir de um qualquer momento, a capacidade produtiva da economia começa a baixar face à lentidão da evolução da procura e a diferença dos PIBs acaba por desaparecer mas a valores muito mais baixos da atividade económica.

(…)

[Tudo isto é] ao contrário da abordagem da macroeconomia neoliberal, que assume que o ‘longo prazo’ é determinada pelo lado da oferta (pelas tecnologias e pelo crescimento da população) e que este é invariante face às condições da procura na economia em qualquer ponto no tempo, (…), que o lado da oferta da economia responde às condições específicas verificadas no lado da procura.”

Em suma, fala-se aqui da necessidade do Estado intervir na longa espiral do tempo e fazer variar a relação entre a despesa de um dado momento do tempo e os rendimentos criados, fala-se do Estado a suprir os disfuncionamentos do mercado e a substituir a procura privada para dinamizar o crescimento, a única via de saída da crise. Ficamos assim em condições de perceber os dois parágrafos seguintes.

 

De novo, nós podemos de forma clara e lógica afirmar: uma mudança na relação rendimentos gerados/despesas efetuadas é a condição necessária e suficiente para que o conjunto das decisões individuais tenha efeitos sobre o conjunto da economia. Pode-se considerar que se exige um certo tipo e volume de meios de produção mas isto é somente necessário, nunca é suficiente.

A substituição da utilização dos termos Atividade e Passividade pelos termos Rendimento e Despesa, que frequentemente tem levado a mal-entendidos especialmente entre os economistas, é exposta, e algumas vezes é tida como uma das diabólicas invenções da economia keynesiana, mas não é, como Albert Hahn em Economics of illusion, New York, 1949, pensa, como um novo “mito da paridade do poder de compra”. Isto mostra, sobretudo, as consequências da transição ao eliminar-se da análise as considerações que têm a ver com a economia global.

 

Wilhelm Lautenbach, Zins, Kredit und Produktion, nota 11. Texto disponível em http://arno.daastol.com/books/Lautenbach%20(1952)%20Zins%20Kredit%20und%20Produktion.pdf

 

Notas

(*) N.E. Esta nota 2 corresponde à nota 11 no texto original “Zins, Kredit und Produktion” a páginas 22-24, e é de autoria de Wolfgang Stützel, editor do texto em 1952. Este texto foi também publicado em A Viagem dos Argonautas em 11 de março, 12 de março e 13 de março de 2017.

  N.T. Quanto às dificuldades de tradução remeto o leitor para o texto 1-A. – “Deambulações em torno de um texto de Lautenbach”, publicado em 6 de março de 2017.

 

(**) O autor

Wolfgang Stützel (1925-1987), economista alemão e professor de economia na Universidade de Saarland, entre 1966 e 1968 foi membro do conselho alemão de especialistas económicos para a avaliação da evolução macroeconómica. É o autor do conceito da Mecânica dos Saldos Macroeconómicos (Volkswirtschaftliche Saldenmechanik). vd. https://en.wikipedia.org/wiki/Wolfgang_St%C3%BCtzel

 

 

 

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