A verdadeira lição da Grande Depressão: a Política Orçamental Funciona. Por Marshall Auerback

Espuma dos dias 2 Coronavirus

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Marshall Auerback Por Marshall Auerback

Publicado por Roosevelt Institute em 30 de agosto de 2010 (ver aqui)

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Edição revista do texto publicado em A Viagem dos Argonautas em 6, 7 e 8 de outubro de 2013 (ver aqui, aqui e aqui)

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Novos ataques às políticas do New Deal de FDR alimentados por ideologias velhas e desacreditadas

Se o governo dos EUA ganhasse um dólar cada vez que alguém afirmava ter aprendido as lições da Grande Depressão, nós provavelmente não teríamos um défice orçamental. Normalmente, esses debates voltam-se sempre para a questão da política orçamental e se, de facto, o New Deal de Roosevelt teve ou não teve um papel perceptível na retoma da economia. Os economistas da corrente “Austeritários orçamentais” [Fiscal Austerians] têm feito muito mesmo para se desconsiderarem as conquistas económicas do New Deal, alguns até mesmo vão ao ponto de sugerir que as políticas orçamentais de FDR agravaram a crise.

Por um breve período, em 2008, os pontos de vista de neo-liberais como Alan Greenspan e de Robert Rubin foram postos de lado. Mas os revisionistas sobre FDR, aqueles que desaprovam as medidas de política orçamental de toda e qualquer natureza, estão agora a voltar. Agora eles estão a empunhar os velhos argumentos de que as despesas públicas “excessivas” geram os riscos de afastar [“crowding out”] a despesa privada, o que torna impossível ao governo dos EUA enfrentar a recessão (porque tem andado a gastar e ficou sem dinheiro) e porque prejudica a capacidade do setor privado se recuperar por causa da muito grande interferência do governo sobre o “mercado livre”. Estas queixas são geralmente acompanhadas por uma onda de retórica condenando as políticas de “negócios não-amigáveis” da atual administração, juntamente com terríveis advertências sobre a problemática da crise da “solvência nacional”. Afinal, os “austeritários” nada valem a não ser que são totalmente previsíveis.

Foi a recaída de 1937 provocada pelo aumento de impostos e pelos sindicatos?

Nesse contexto, temos que dar algum crédito aos professores Thomas Cooley e Lee Ohanian, que têm tido uma abordagem mais inovadora na sua crítica ao New Deal. Em alguns aspetos, eles realmente validam os argumentos a favor de uma expansão da política orçamental (embora os dois autores possam não ver a questão dessa forma). Cooley e Ohanian argumentam que:

A economia não recaiu em 1937, porque os gastos do governo diminuíram. Os aumentos nos impostos, particularmente nas taxas de imposto sobre rendimentos de capital e a expansão dos sindicatos, foram provavelmente os responsáveis. Infelizmente, esses mesmos fatores representam uma ameaça similar ainda hoje.

Os dados do Office of Management and Budget sugerem que a despesa caiu, na verdade, em 1937 e 1938 (ver aqui) e, ao contrário das afirmações de Cooley e Ohanian, esta diminuição da despesa pública teve um impacto muito nocivo sobre a atividade económica e sobre o emprego. Iremos abordar a questão orçamental atualmente, mas falemos primeiro da falsa “sindicalização excessiva”. Um observador objetivo ao olhar para os EUA no século 21, dificilmente poderia concluir que os sindicatos têm hoje qualquer poder real na economia americana, da mesma forma que seria incapaz de pensar que temos um governo “socialista”, dedicado à promoção de uma vasta agenda da ala esquerda que ainda reforça mais o poder sindical. Obama não assumiu a reforma do Direito do Trabalho e os salários não aumentaram numa geração; na verdade, no ano passado, eles até caíram.

É verdade, o Presidente ocasionalmente apresentou uma retórica social-democrata, mas até agora, as políticas redistributivas têm beneficiado principalmente as instituições financeiras. Os benefícios da Segurança Social estão sob ameaça através de uma nova “comissão bipartidária” sobre os défices de longo prazo, as propostas sobre a saúde foram estripadas no projeto-lei sobre a “reforma dos cuidados de saúde”, e a importância dos sindicatos fora do sector público tem definhado ao longo destes últimos 30 anos. As cláusulas de reajustamento sobre o custo de vida desapareceram em grande parte desde o início dos anos 80 (embora alguns benefícios públicos como a social se mantenham), o rendimento médio por hora mantém-se praticamente estagnado e eu não ficaria surpreendido em ver a deflação salarial antes de se atingir o pico da taxa de desemprego por estes tempos mais próximos. As famílias norte-americanas estão a pagar a dívida numa base líquida – mesmo a dívida dos cartões de crédito – e os credores continuam relutantes em concederem novos empréstimos. Assim, as probabilidades de ganhar raízes uma espiral salários / preços como consequência de um poder sindical excessivo parecem-nos decididamente muito pequenas – de facto, perto de zero.

Sobre a outra questão, sobre os impostos, eu realmente tenho algum grau de simpatia com os argumentos de Cooley e Ohanian, mas em grande parte porque, funcionalmente, um aumento de impostos funciona como uma política anti-cíclica que atenua o impacto da política orçamental expansionista.

Voltemos então às questões básicas. Sob um regime de moeda fiduciária, como temos nos EUA, quando o governo federal gasta, este credita eletronicamente as contas dos bancos. A tributação funciona exatamente ao contrário. As contas bancárias privadas são debitadas (e as reservas privadas diminuem) e as contas públicas são creditadas (e as suas reservas aumentam). Tudo isso é realizado por apenas lançamentos contabilísticos mas a questão principal a assinalar é a de que os gastos criam novos ativos financeiros líquidos enquanto os impostos os esgotam.

Assim, num certo sentido, Cooley e Ohanian têm razão. Os aumentos de impostos vão reduzir a procura agregada tal como acontece com as reduções nas despesas públicas. Em termos económicos, ambos servem para deprimir a atividade económica. Estamos de acordo com os autores: os aumentos de impostos, neste momento são uma ideia idiota. Eles não servem para “reduzir” o défice, pois o impacto resultante sobre a atividade do sector privado é provavelmente o de a diminuir e, assim, aumenta a diferença entre os gastos do governo e as receitas à medida que a economia desacelera.

A questão mais geral dos gastos do governo versus os cortes de impostos é um argumento político sobre a distribuição do rendimento e os economistas (e outros) podem legitimamente argumentar sobre os efeitos multiplicadores respetivos de um relativamente ao outro. Mas pelo menos esse tipo de discussão desloca o debate na direção certa, para o aumento da atividade económica e, consequentemente, para o crescimento do emprego e bem longe pois das discussões sobre se devemos colocar à cabeça e como prioridade as políticas de austeridade orçamental e de redução do défice como um objetivo primário da política governamental. FDR teve problemas apenas quando ele se afastou da política orçamental expansionista para a política de austeridade em 1937.

No início da Grande Depressão, a produção de bens e serviços entrou em colapso profundo e o desemprego aumentou para 25 por cento. Influenciados pelo seu, secretário de Estado do Tesouro, Andrew Mellon, um verdadeiro “liquidacionista”, o então presidente Hoover fez tentativas relativamente mínimas para implantar a política orçamental do governo para estimular a procura agregada. Além disso, o Federal Reserve, na realidade, vendeu títulos para forçar à subida das taxas de juros num esforço sem sentido para conter as saídas de ouro que se faziam porque o resto do mundo tinha perdido a confiança na economia dos EUA. Isto era demasiado para os dias tranquilos do padrão-ouro!

A Estratégia de FDR sobre o Emprego e sobre os Salários Funcionou

Tudo isto mudou sob FDR. A chave para avaliar os resultados da política de Roosevelt no combate à depressão está no tratamento estatístico de muitos milhões de desempregados a receber subsídio envolvidos nos seus programas de trabalho massivos. O governo empregou cerca de 60 por cento dos desempregados em obras públicas e em projetos de conservação em que plantaram cerca de um milhar de milhões de árvores, salvaram o grou-cantor da América do Norte, modernizaram a América rural e construíram diversos projetos tais como a Cathedral of Learning em Pittsburgh, o Montana State Capitol, grande parte das margens do lago em Chicago, o New York’s Lincoln Tunnel e o complexo de Triborough Bridge, a Tennessee Valley Authority e os porta-aviões Enterprise e Yorktown.

Também se construíram ou se renovaram 2.500 hospitais, 45.000 escolas, 13.000 parques e jardins infantis, 7.800 pontes, 700 mil milhas de estradas e mil aeródromos. E com isto empregavam-se 50.000 professores, reconstruiu-se na totalidade o sistema escolar rural do país inteiro e contrataram-se 3.000 escritores, músicos, escultores e pintores, incluindo Willem de Kooning e Jackson Pollock. Muita coisa mesmo para que se possa ter e manter a ideia de que os empregos públicos não são “verdadeiros postos de trabalho”, como ouvimos constantemente dizer aos críticos do New Deal!

As razões para as discrepâncias nos dados sobre o desemprego que historicamente têm surgido fora do New Deal devem-se a que o método de amostragem atual nas estimativas para o desemprego pelo BLS só foi desenvolvido depois de 1940 (para mais detalhe ver aqui). Se estes americanos a trabalhar nestes programas são considerados desempregados, o certo é que a administração Roosevelt reduziu o desemprego de 25 por cento em 1933 para 9, 6% por cento em 1936, e depois para 13 por cento em 1938 (devido em grande parte a uma inversão do ativismo orçamental que tinha sido a característica de FDR no primeiro mandato), esta taxa voltou a cair para menos de um por cento até ao momento em que os EUA mergulharam na Segunda Guerra Mundial, no final de 1941.

Na verdade, uma vez que a Grande Depressão atingiu o fundo no início de 1933, a economia dos EUA embarcou em quatro anos de expansão que constituíram o maior boom cíclico na história económica dos EUA. Durante quatro anos, o PIB real cresceu a uma taxa de 12% e o PIB nominal cresceu a uma taxa de 14%. Houve, depois, uma outra depressão menor e mais curta em 1937, em grande parte causada pela nova contração orçamental (e pelas maiores exigências quanto a margens feitas pelo Federal Reserve).

Esta recaída económica levou ao equívoco de que o banco central estava a puxar uma corda para a contenção em toda a década de 1930, até que o estímulo orçamental gigante do esforço de guerra finalmente trouxe a economia para fora da depressão. Isso é factualmente incorreto. A maioria dos relatos da Grande Depressão subestimam o efeito das medidas do New Deal quanto à criação de empregos, porque eles não mostram como é que grande parte do declínio no emprego oficial era atribuível ao efeito multiplicador dos gastos na criação de emprego direto. Além disso, a categoria “trabalhos públicos de ajuda à retoma económica” não inclui o emprego criado nas obras públicas financiadas por Public Works Administration (PWA), nem o efeito multiplicador dos gastos feitos por PWA. No entanto, os números contam indiretamente a história da trajetória seguida pelo desemprego oficial – fortemente decrescente nos períodos em que os gastos com os trabalhos públicos foram altos e ou decrescentes mas muito mais lentamente ou crescente mesmo nos períodos em que os gastos públicos para a retoma económica foram cortados. Na verdade, até ao final de 1934, mais de 20 milhões de americanos (um em cada seis!) estavam a ter empregos ou assistência pública de uma forma ou de outra por parte do “Welfare State” [N.T. Na mesma linha veja-se Krugman, Acabem com Esta Crise Já, ed. Presença].

Assim, 9, 6% de desemprego alcançado no final de 1936 era ainda um valor muito alto. Mas é difícil imaginar os Democratas estarem em perigo político aquando das eleições intercalares, ou testemunhar o estado atual abismal da popularidade de Obama com a hipótese de a Administração de agora ter podido reduzir o desemprego em dois terços num mandato, como o fez FDR, na base de medidas honestas sobre os níveis de desemprego. Basta dizer que, a redução do desemprego foi o foco único da Administração Roosevelt; pelo contrário, hoje temos “a nova normalidade”, com efeito, um falso argumento intelectual para justificar porque não se pode gerar um maior crescimento do volume de emprego. E isto é uma prova de fracasso político.

Em referência à crítica da política de “altos salários” de FDR que é agora feita por Cooley e Ohanian, vale a pena notar que a “inflação” salarial que eles condenam era na realidade um produto de um ambiente deflacionário em que o nível geral de preços caía mais rapidamente do que o nível do salário nominal. Durante o início da Grande Depressão, o a criação de produção entrou em colapso em face da falta de ação orçamental do governo americano e do Banco Central com as subidas das taxas de juro. Isto teve o resultado estranho de gerar um aumento salarial real contra-cíclico, que na verdade não era nada mais do que um produto resultante da natureza depressiva da economia, em que os preços globais foram caindo mais rapidamente do que os salários (ver aqui).

Sobrepondo os dados salariais com a redução efetiva de desemprego entre 1933 até ao final de 1936, torna-se difícil mostrar um caso empírico em que as melhorias salariais das políticas praticadas por FDR durante a Grande Depressão fossem prejudiciais ao crescimento económico e ao aumento do emprego. Mesmo que alguns setores pudessem ser prejudicados (e isso não é comprovado por Cooley e Ohanian) os factos sugerem realmente que os aumentos dos salários reais estiveram na verdade associados com o aumento do emprego global.

A recaída provocada pelas medidas de austeridade

E sobre a recaída em 1937/38, o que dizer? Por volta de 1936, muitos economistas e especialistas financeiros (nomeadamente o Secretário de Estado do Tesouro de FDR, Henry Morgenthau) temia que o país pudesse ir à falência se o governo mantivesse o défice pela despesa (será que soa a qualquer coisa de familiar?). E depois de tudo, eles argumentavam, os défices governamentais tinham “bombeado” a economia. O setor privado poderia agora expandir-se por conta própria e voltar para valores muito próximos do nível de pleno emprego de 1928-início de 1929.

Consequentemente, Roosevelt passou (em 1936) para uma plataforma em que ele iria tentar reduzir, se não eliminar, o défice. Ele ganhou a eleição por uma esmagadora maioria – compreensivelmente, uma vez que os EUA estavam fora da situação de depressão em 1937. Fiel à sua promessa de campanha, os gastos do governo foram cortados significativamente em 1937 e 1938, e os impostos foram aumentados para “financiar” o novo programa de segurança social. Em 1938 Roosevelt apresentou um orçamento em que o défice estava praticamente eliminado (0,1% do PIB). A recaída económica daí resultante, baseada nos esforços feitos para equilibrar o orçamento, foi agravada por uma política monetária recessiva e sem sentido aplicada pelo FED e devidamente aplicada.

Isto não deve surpreender ninguém. Qualquer tipo de austeridade orçamental durante um período de abrandamento económico, quer seja através de cortes nos gastos governamentais quer seja através de impostos mais elevados, de facto, deprime a atividade económica.

Mas a outra lição da Grande Depressão é que a política orçamental devidamente orientada e centrada na criação de emprego pode funcionar e ter sucesso. A Grande Depressão foi realmente uma terrível calamidade humana, mas o New Deal de Franklin Delano Roosevelt (incluindo as políticas de salários elevados) atenuaram esse brutal desastre que foi a Grande Depressão. Não há nada que possa reclamar e “mostrar” que as intervenções feitas tornaram as coisas ainda piores, a não ser quando o próprio Roosevelt capitulou perante as velhas e cansadas forças do conservadorismo financeiro e da austeridade orçamental e aí foi a economia que pagou o preço.

Felizmente, FDR não estava ideologicamente agarrado às ideias da austeridade orçamental e rapidamente mudou de rumo. Para isso ajudou, é claro, o facto de que o seu gabinete estava bem representado por figuras progressistas, como Frances Perkins, Wallace Henry, Harold Ickes e Hopkins Harry, que superaram as forças do conservadorismo económico simbolizado e representado pelo Secretário de Estado do Tesouro de FDR, Henry Morgenthau. Precisamos desse tipo de forças progressistas na atual Administração [Obama], especialmente em virtude da recente renúncia da Presidente do Conselho de Consultores Económicos, Christina Romer. É hora de deixarmos a velha ideologia quando até foi ela que criou a crise atual. Hoje, esperamos que o presidente Obama, como o fez FDR antes dele, mude de rumo e muito rapidamente. A América está pronta para um novo New Deal.

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O autor: Marshall Auerback é analista de mercado e comentador. Marshall Auerback é membro dos Economistas pela Paz e Segurança. Um estrategista global do grupo de investimentos Madison Street Partners, LLC, com sede em Denver, ele tem mais de 28 anos de experiência em gestão de investimentos. Desde 2003, ele é economista consultor da PIMCO, e até julho de 2010 foi estrategista global de carteiras para a gestora de fundos RAB Capital PLC. De 1983 a 1987, Auerback foi gerente de investimentos da GT Management (Asia) Limited em Hong Kong, onde se concentrou nos mercados de Hong Kong, dos países da ASEAN (Singapura, Malásia, Filipinas, Indonésia e Tailândia), Nova Zelândia e Austrália. De 1988 a 1991, ele esteve baseado em Tóquio, onde a sua experiência na Orla do Pacífico foi ampliada para incluir o mercado acionista japonês. De 1992 a 1995, Auerback geriu um fundo de hedge dos mercados emergentes para o Tiedemann Investment Group em Nova York, e de 1996 a 1999 atuou como estrategista de economia internacional para a Veneroso Associates. De 1999 a 2002, geriu o Prudent Global Fixed Income Fund for David W. Tice & Associates, uma empresa de gestão de investimentos sediada nos EUA.

Auerback é licenciado em inglês e filosofia pela Queen’s University em 1981 e em direito pelo Corpus Christi College, da Universidade de Oxford, em 1983.

 

 

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