Dos tempos de 1940 à procura da paz aos tempos de hoje à procura da guerra
A incomodidade de se ser incómodo
17 m de leitura
Coimbra, 5 de março de 2022
Uma pessoa minha conhecida reagiu fortemente a dois textos publicados no blog A Viagem dos Argonautas. Enviei-lhe uma resposta com o pedido de autorização de publicamente criticar a sua posição mas não tive nenhum eco.
Tive de refazer o texto de forma a eliminar as referências pessoais [1]. Acrescento a ligação a dois textos que nesta resposta são referenciados, o de Eisenhower no seu discurso de despedida à nação americana e o de Rajat Menon, de agora. Os originais em português foram publicados em A Viagem dos Argonautas, aqui e aqui.
Outros meus amigos entendem que criticar o modelo americano imposto ao mundo, e rejeitado pelo menos pelos russos e chineses, é estar ao lado de Putin, discurso que não entendo. É nossa obrigação perceber como é que se chegou aqui em vez de reduzir a explicação a uma pura diabolização de um homem, Putin.
Percebe-se que nesta mesma lógica a solução da crise passaria então por um drône que matasse Putin! E o mais provável é termos a seguir um qualquer general ainda mais à direita como muitos que também há por aqui no Ocidente. Basta lembrar o que esteve para acontecer em Pristina com o general Wesley Clark [2]. Mas mais perto de nós, não reunia Obama, segundo o sitio Intercept, um dia por semana com os seus operacionais da morte para mandar matar à distância quem era demasiado inconveniente para os interesses americanos. Relembro aqui a sodomização pública de Kadafi, um político que enlouqueceu (!) depois de lhe terem morto a mulher e a filha em casa com um ataque à distância, e a alegria de Hillary Clinton que terá mais ou menos dito o seguinte: pronto, chegámos e já está! Resolveu-se com essa sodomização alguma coisa? Não, e a Líbia aí está agora a mostrá-lo. De resto reduzir a questão a um homem é em boa lógica dizer que não há sociedades, que não há contextos, que os contextos criados ou impostos não moldam os homens, etc. etc. Outra versão, mais à “esquerda” de que não há sociedades, há indivíduos, outra versão de Margaret Thatcher.
Mais perigoso ainda, com esta forma de ver a crise ucraniana é ignorar que as situações de crise profunda, como esta, têm sempre uma longa fermentação, não caem do céu, é branquear toda a responsabilidade que o Ocidente também tem tido ao longo deste processo de degradação das relações entre Ocidente e Leste europeu. Se dúvidas há quanto a isto, relembro aqui a introdução feita por nós e dedicada a um antigo aluno meu, DA, escrito em 2014 onde se dizia, e reproduzo:
“A Europa mortalmente ferida em Pristina, a Europa agoniza agora em Kiev
Não esquecer o Kosovo, e Porque é que o massacre de Odessa teve tão pouco eco nos media ocidentais são dois textos que dedico ao meu antigo aluno que muito estimo D.A., que por acaso encontrei no café que habitualmente frequento quando quero estudar em silêncio, um café com muita gente. Paradoxo? Não, é assim mesmo.
Um título que me surgiu ao traduzir este texto e na sequência de uma conversa havida com esse antigo estudante meu, que muito estimo, para quem o problema da Crimeia era de que Putin devia estar louco. Símbolo da manipulação ocidental, é a sua resposta à minha questão: sabes, digo eu, ninguém morre por um tratado comercial. Morre-se então em Kiev porquê, pergunto. A resposta foi imediata: morre-se pela bandeira da União Europeia. Abro de espanto estes meus olhos de quem já tem uma razoável idade para engolir tamanhas “verdades” e não me controlei ao ponto de reagir: morrer pela bandeira dos outros, é coisa que a história nunca me mostrou, foi o que respondi.
Mas, entre este antigo aluno e eu, de quem fui com muito orgulho seu professor, há uma cumplicidade que está para além das brutais diferenças que nos separam e digo: reclamas contra a Crimeia, não reclamas contra as mortes de Kiev. Não está comprovado quem sejam os responsáveis, diz-me. De novo reagi: certo mas não ouvi nem o Presidente da Comissão Europeia, nem o Senhor Obama exigirem um inquérito imediato a estas mortes. Ouviste, questiono, frontalmente. Não, foi a resposta.
E, já agora, se consideras ilegal o que se passou na Crimeia porque não consideras ilegal o que se passou exactamente antes disso em Kiev. E a resposta parece reproduzir o texto que se segue: eram dos nossos.
Dos nossos? Os nazis são dos nossos? Como? Nem acredito no que estou a ouvir, reajo eu a esta afronta.
São pró-europeus, são dos nossos.
Nada mais a dizer, pensei. Aconselhei-o então a ler a minha peça sobre a Letónia, um texto neutro, disse-lhe eu. Como lhe poderia também sugerir a leitura do outro texto sobre as mortes em Odessa, texto a ser publicado também em A Viagem dos Argonautas.
Um texto neutro, um texto seu?
Bem mais neutro do que tudo o que possas ler, sobretudo a propósito de um tema em que discordar das monstruosidades que se fazem ou mandam fazer por esta Europa a soldo dos Estados Unidos, e não só, ou dos seus generais não democraticamente eleitos, leva a que se seja acusado de ser pró Putin e só falta acrescentar, acusado de comunista, respondo.
E a conversa fica por aqui.
Coimbra, 25 de Maio de 2014.” Fim de citação.
Este texto foi publicado há quase 8 anos (ver aqui).
Não me vou alongar neste campo. Digo apenas que estou a fazer um trabalho para o Blog sobre o espírito de Bretton Woods, uma Conferência realizada quando as bombas ainda caíam fortemente sobre a Europa mártir. Caíam e caíam fortemente. Nessa altura homens corajosos reuniram-se em Bretton Woods para procurar reconfigurar o mundo e responder à reconfiguração das sociedades para um futuro imediato. Em tempo de guerra, homens de coragem e de cultura, num esforço extraordinário pensaram a paz em tempo de guerra. Os políticos de hoje, só sabem pensar na guerra em tempo de paz. Lamento dizer isto, mas demonstrem-me o contrário. E para mim é tanto assim que só vejo do lado ocidental um Homem capaz de servir de mediador neste conflito trágico, assassino, e esse homem é o papa Francisco E do lado de lá também haverá alguém equivalente penso eu. e é urgente a mediação, e é urgente que se pare esta mortandade, um verdadeiro insulto à humanidade. Os políticos esses parecem só estar ao serviço da máquina de guerra e nos dividendos eleitorais que daí venham. É a leitura que faço.
Mas voltemos à construção de um mundo de paz em tempo de guerra, voltemos a Bretton Woods. essa Conferência de que retenho uma declaração desses homens de então: (original aqui)
[A] única verdadeira salvaguarda dos nossos interesses nacionais reside na cooperação internacional. Chegámos a reconhecer que a forma mais sensata e mais eficaz de proteger os nossos interesses nacionais é através da cooperação internacional – ou seja, através de um esforço conjunto para a consecução de objetivos comuns. Esta tem sido a grande lição ensinada pela guerra e é, penso eu, a grande lição da vida contemporânea – que os povos da terra estão inseparavelmente ligados uns aos outros por uma profunda e subjacente comunidade de propósitos. Esta comunidade de propósitos não é menos real e vital em paz do que na guerra, e a cooperação não é menos essencial para o seu cumprimento. Heny Morgenthau (Tradução pessoal) |
O resultado [de Bretton Woods] será de importância vital para todos em cada país. Em última análise, ajudará a determinar se as pessoas têm ou não empregos e a quantidade de dinheiro que devem encontrar nos seus envelopes salariais semanais. Mais importante ainda, diz respeito ao tipo de mundo em que os nossos filhos vão crescer até à maturidade. Diz respeito às oportunidades que aguardarão milhões de jovens quando finalmente conseguirem tirar os seus uniformes e voltar para casa, arregaçar as mangas e ir trabalhar. Henry Morgenthau. (Tradução pessoal) |
Encontramo-nos numa encruzilhada, e temos de avançar de uma forma ou de outra. A Conferência em Bretton Woods ergueu uma placa de sinalização – uma placa que aponta para uma estrada suficientemente larga para que todos os homens possam andar passo a passo e lado a lado. Se eles quiserem partir juntos, não há nada na terra que os impeça. Henry Morgenthau (tradução Pessoal) |
Repare-se num detalhe: não se vê nenhum político dizer isto hoje. Todos pensam em guerra e em mais guerra. Negociações de paz ninguém pensa porque simplesmente nenhum deles é já capaz de nisso pensar .
Duas grandes equipas trabalharam nesse projeto de em tempo de guerra criar os instrumentos para o tempo de paz: a americana e a inglesa. Da americana sublinhemos, entre outros, três nomes. Henry Morgenthau, Harry White e Marriner Eccles.

Do lado inglês há que sublinhar a presença de Dennis Robertson, Lionel Robbins, John Maynard Keynes. Desta última equipa e desse tempo deixo-vos a imagem sobretudo de um homem, à entrada da conferência de Bretton Woods e no seu discurso de encerramento. Vejam a diferença nas duas fotos tiradas com menos de 15 dias de diferença, possivelmente mediadas por dois ataques cardíacos.
E por fim, na sessão de encerramento de Bretton Woods Keynes afirma:
“Finalmente, talvez tenhamos conseguido aqui em Bretton Woods algo mais significativo do que o que está inserido nesta Ata Final. Demonstrámos que um concurso de 44 nações é realmente capaz de trabalhar em conjunto numa tarefa construtiva em amizade e concordância ininterrupta. Poucos acreditaram que tal fosse possível. Se pudermos continuar numa tarefa maior, tal como começámos nesta tarefa limitada, há esperança para o mundo. Em todo o caso, dispersamo-nos agora pelas nossas próprias casas com novas amizades seladas e novas intimidades formadas. Temos vindo a aprender a trabalhar em conjunto. Se pudermos continuar assim, este pesadelo, no qual a maioria de nós aqui presentes passou demasiado tempo da nossa vida, terá terminado. A irmandade dos homens terá passado a ser mais do que uma frase.” Fim de citação
E a irmandade dos homens está a esfumar-se. Entre o lado de cá e o de lá, entre o Ocidente e o Leste, uma guerra assassina de que se quer que haja um só culpado. Entre os do lado de cá, uma concorrência selvagem em que todos os golpes são possíveis e a falta de solidariedade é uma constante. Veja-se, por exemplo, a cimeira europeia em que se decidiu o Programa de Recuperação e Resiliência.
Estes foram os tempos de outrora que se contrastam com os tempos de hoje de guerras pré-fabricadas para utilizar a expressão de Ann Jones (original aqui) . E a propósito das guerras pré-fabricadas relembro aqui o que nos diz o tenente-coronel da força aérea americana, William Astore (original aqui):
“A guerra pré-fabricada é como o deus Pentágono [Pentagod], tem governado durante tanto tempo. Há, como início, a fabricação de causas falsas para a guerra. No Vietname, foi o Incidente do Golfo de Tonkin, os “ataques” a navios da Marinha dos EUA que nunca aconteceram. No Afeganistão, foi a vingança dos ataques do 11 de Setembro contra um povo que não os planeou nem os cometeu. No Iraque, foram as armas de destruição em massa que Saddam Hussein não possuía. As causas reais não interessam muito ao deus da guerra da América, uma vez que as falsas podem sempre ser fabricadas, após o que suficientes verdadeiros crentes especialmente no Congresso – defendê-las-ão então fiel e ardentemente.
Mas a guerra pré-fabricada não começa apenas com ou consiste apenas em causas fabricadas. É fabricada muito antes do tempo numa colossal catedral de violência – o complexo militar-industrial-congressional a que se referia o Presidente Eisenhower – que envia os seus missionários e lacaios por todo o planeta numa missão de alcance global, poder global, e domínio de todo o espectro. A guerra é pré-fabricada em 750 bases militares espalhadas por todo o mundo em todos os continentes exceto na Antártida, nas gigantescas empresas de armamento da América como a Boeing, Lockheed Martin, e Raytheon, e pelas forças de Operações Especiais que atuam muito como os Jesuítas da Contra-Reforma Católica, espalhando a única verdadeira fé a 150 países.
Uma vez que o deus da guerra da América é também uma divindade ciumenta, insiste em dominar todos os domínios – não só a terra, o mar e o ar, mas também o espaço. Ainda mais reinos etéreos como o ciberespaço e realidades virtuais/aumentadas devem ser capturados e controlados. Procurar omnipotência e omnisciência em nome da sua segurança e, se o deixarem, também saberá tudo sobre si, ao mesmo tempo que tem o poder de o ferir, caso deixe de o adorar cegamente e de o alimentar com mais dinheiro.
No entanto, por mais forte que seja, a sua vontade de fabricar ameaças e exagerar as vulnerabilidades nunca acabam. A China e a Rússia são alegadamente as maiores ameaças do momento, dois rivais “próximos”, supostamente a conduzir uma nova guerra fria. A China, por exemplo, tem agora alegadamente uma marinha de 355 navios, um desenvolvimento ostensivamente alarmante (mesmo que esses navios não sejam de modo algum tão poderosos como os seus equivalentes americanos). Isto requer naturalmente ainda mais construção naval por parte da Marinha dos EUA.
A Rússia pode ter uma economia menor do que a da Califórnia, mas é alegadamente líder no desenvolvimento de mísseis hipersónicos (e a China também entrou agora na corrida com, como disse recentemente o presidente do Joint Chiefs, algo “muito próximo” de um “momento Sputnik”). Como resultado, o Pentagod exige ainda mais dinheiro para colmatar esta alegada lacuna de mísseis. Tal como as anteriores lacunas de bombardeiros e mísseis da anterior Guerra Fria, tais vulnerabilidades existem sobretudo na mente dos seus crentes sectários.
E, nesse contexto, eis um artigo de fé raramente questionado pelos verdadeiros crentes: enquanto a América se orgulha de ter os melhores e mais poderosos militares do mundo, declara-se perenemente em perigo de ser ultrapassada. Como resultado, desde porta-aviões a bombardeiros furtivos e mísseis nucleares, é necessário fabricar cada vez mais armamento. . Quem se importa que a junção do orçamento das 11 nações mais próximas fica ainda abaixo do orçamento de “defesa” americano. Cuidado com o grito : Cuidado com o grito: “Ó gente de pouca fé!” caso se atrevam a questionar qualquer das “necessidades” fabricadas pelo deus Pentágono.” Fim de citação.
Em suma, os tempos de Bretton Woods eram tempos de esperança, os de hoje são tempos de desesperança, apenas isto, são tempos de polarização política extrema, são tempos de um mundo binário que eu pensava já fazer parte das relíquias da história, um tempo de tal forma polarizado que, independentemente do que as pessoas possam efetivamente sentir, se ouve dizer furiosamente “ou aceita as regras desta democracia ou vá para outro lado”, um tempo em que quem não é por nós é contra nós. Lamento muito, mas isto não faz lembrar nada?
Sem sentimentalismos, a mim faz-me lembrar um final de tarde por mim passado num hospital, o de S. José e faz agora 50 anos, a escorrer sangue pela boca com os maxilares partidos, a pensar que ia morrer e que ia deixar a minha mãe, viúva, sozinha. Tudo isto porque eu tive o azar de estar onde devia estudar, em aulas com o Professor Joaquim Lourenço, e a polícia de choque teve a “felicidade” de escoar a sua raiva, estando onde não devia estar por ordem do ministro fascista Gonçalves Rapazote, a ocupar militarmente o ISEG. Foi só isso, mas no mundo polarizado de então, no dia seguinte e na minha aldeia, a minha mãe é acusada de ser mãe de um comunista que enquanto tal devia estar preso! Este foi o mundo polar em que cresci, o mundo de quem não é por nós é contra nós, e quem é contra nós, é comunista. Na situação atual isso significa quem não é por nós é contra nós, é a favor de Putin mesmo que nada diga nesse sentido. Sem que disso se tenha consciência vejo muita gente profundamente séria a deslizar para esta equivalência. E é lamentável, para não dizer mais.
Tudo isto traduz a incomodidade de ser incómodo.
Notas
[1] Nota de editor: este texto veio a ser publicado na Viagem dos Argonautas (ver aqui).
[2] Uma história relatada por John Bull e publicada por Viagem dos Argonautas (aqui)