MARRINER ECCLES, um homem muito à frente do seu tempo (anos 30) e do nosso também – 6. De uma crise a outra, da crise dos anos 30 à crise dos anos de 2010-2020: 6.3. Leitura entre as linhas: Um memorando do Presidente do FED Marriner Eccles. Transposição por Stephanie Kelton)

A good many people believe Marriner Eccles is the only thing standing between the United States and disaster.” – TIME Magazine, 1936

Nota de editor:

Iniciámos no passado dia 1 de Fevereiro uma longa série – de mais de 50 textos – cuja última parte está ainda em preparação. A publicação de hoje ”Leitura entre as linhas: Um memorando do Presidente do FED Marriner Eccles” por Stephanie Kelton, é o terceiro texto da 6ª parte da série – 6. De uma crise a outra, da crise dos anos 30 à crise dos anos de 2010-2020, parte que é composta por 11 textos.

Esta série é, desde logo, o resultado do labor incansável e da mais elevada competência do seu autor, Júlio Marques Mota, e, como o próprio refere, é um trabalho que leva mais de um ano em preparação e “não foi um trabalho fácil porque, partindo do zero quase absoluto, tivemos de andar a deambular de texto em texto, aceitando uns, rejeitando outros, de referência bibliográfica em referência bibliográfica, cruzando textos e referências bibliográficas”.

É com grande satisfação e orgulho que publicamos na língua portuguesa estes textos em torno das ideias e ações de Marriner Eccles, o mais brilhante de todos os Presidentes do Conselho de Governadores do FED nas palavras de Michael Pettis (e que fazemos nossas). Como diz Júlio Mota, “Marriner Eccles é um dos maiores símbolos intelectuais da oposição fundamentada feita contra os teóricos criadores de catástrofes e os seus vassalos” e cujas ideias e ação, segundo a Time referia em 1936, “protegeram a América do abismo. Trata-se de ideias que na primeira metade do século XX ajudaram a fazer da América um grande país, e que vão contra as ideias destes falcões monetaristas (…) que querem fazer da Europa um insignificante continente”. E como conclui Júlio Mota os “… tempos de ontem, afinal, não diferem muito dos tempos de hoje, a lembrar a frase de Peter Kenen: o mundo mudou muito, mas os problemas são os mesmos. Os problemas são os mesmos e os políticos, pelo que se vê, são também os mesmos. É exatamente isto que confere uma extrema atualidade aos textos que iremos apresentar em torno da obra de Marriner Eccles.”


6. De uma crise a outra, da crise dos anos 30 à crise dos anos de 2010-2020

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

30 m de leitura

6.3. Leitura entre as linhas: Um memorando do Presidente do FED Marriner Eccles

Marriner Eccles (transposição por Stephanie Kelton)

Publicado por  em 4 de Agosto de 2013 (ver aqui)

 

Depois de ter partilhado algumas ideias sobre a iminente decisão de substituir Ben Bernanke como Presidente da Reserva Federal, não pude deixar de revisitar os escritos de Marriner Eccles. Eccles era um republicano e um homem de negócios que, aos 22 anos de idade, se tinha tornado um milionário com um impressionante historial de reestruturação e consolidação de balanços (incluindo os das instituições financeiras) para resistir à agitação da Grande Depressão. Em 1934, Franklin D. Roosevelt convidou Eccles para dirigir a Reserva Federal, posição que ocupou até 1948.

O seguinte memorando – escrito em 19 de Maio de 1938 – dá-nos uma ideia da forma como Eccles pensava sobre questões importantes relacionadas com a estabilidade financeira e a política macroeconómica. O que ele não diz é pelo menos tão importante como o que ele faz. Para aqueles que têm problemas com o discurso económico, intercalo o meu próprio discurso simples ao longo do texto.

Como princípio geral, as despesas deficitárias do governo só devem ser empreendidas em tempos de depressão como meio de compensar parcialmente ou compensar a falta de atividade privada. Inversamente, quando a dívida privada está em rápida expansão, deveria haver uma contração da dívida pública como contrapeso e influência estabilizadora.

KELTON: O governo é um parceiro na economia. Quando o sector privado aperta o seu cinto (ou seja, pede emprestado e gasta menos dinheiro), é orçamentalmente da responsabilidade do governo compensar essa contração desapertando o seu cinto. (A propósito, foi exatamente isto que acabou com a Grande Depressão e, mais recentemente, o que travou a Grande Recessão).

N.T. Legenda: Linha azul: Dívida das famílias em relação ao PIB. Linha vermelha: Dívida Federal: total da dívida pública em % do PIB

 

Contudo, pode haver momentos em que o rendimento nacional está a crescer uma taxa elevada e em rápido avanço quando seria desejável, de todos os pontos de vista, aumentar a tributação – por exemplo, alargando a base fiscal – a fim de manter um fluxo de fundos para elementos empobrecidos da população, para os idosos e desempregados, cujo poder de compra é necessário para sustentar a produção e assim ajudar a preservar o capital existente e tornar possível uma maior expansão rentável das instalações. Isto, por sua vez, proporcionaria uma saída para a acumulação de poupanças no domínio do investimento privado. Caso contrário, como aconteceu no final dos anos vinte, pode haver acumulações excessivas de capital de investimento que, incapaz de encontrar saída na empresa doméstica produtiva, são desviadas para canais improdutivos e para licitações especulativas de ações e outras aplicações financeiras ou colocadas em empréstimos estrangeiros incobráveis.

KELTON: Pode fazer sentido aumentar os impostos sobre os ricos e aumentar as despesas com os idosos e desempregados, porque os ricos consagram demasiado do seu rendimento em empreendimentos especulativos, criando bolhas, enquanto os idosos e os desempregados gastarão o seu rendimento a comprar os produtos da indústria, o que ajuda a esta coisa chamada capitalismo a funcionar.

O problema a que me refiro parece-me ser básico na nossa economia. Penso que tem sido bem delineado pelo Brookings Institution nos seus estudos. Assim, no seu volume intitulado “Rendimento e Progresso Económico”, estes estudos salientam que sempre tivemos, mesmo em tempos de expansão, uma oferta suficiente de mão-de-obra, de combustível, de dinheiro e crédito e de recursos materiais para produzir muito mais do que foi realmente produzido. Salientam (p. 37) que “as necessidades ou desejos de consumo do povo estavam longe de ser satisfeitos durante o período da nossa maior realização económica”; e (p. 36) que “o grande problema dos empresários americanos não é como produzir mais, mas como vender o que já produziram”.

KELTON: Temos mais dinheiro, pessoas, e recursos naturais do que sabemos o que fazer com eles. O que nos falta – num mundo em que a motivação do lucro impera – são formas suficientemente lucrativas para os colocar a todos em uso. Assim, acabamos por ter uma economia que quase sempre fica aquém do seu potencial.

Tendo chamado a atenção para a má distribuição dos rendimentos, levanta-se então o que me parece ser um problema fundamental, nomeadamente, a manutenção de um equilíbrio entre os três fatores de poupança, consumo, e formação de capital. Afirma-se (p. 41 e seguintes) * ‘De acordo com opiniões tradicionais, a forma como o rendimento é dividido entre despesa e poupança não afeta de modo algum o grau de utilização dos nossos recursos produtivos. Se mais dinheiro for poupado, quanto maior, maior será a construção de bens de capital; se mais for gasto, maior será a produção de bens de consumo. Um aumento da poupança, portanto, apenas transfere mão-de-obra e materiais do emprego nas indústrias de bens de consumo para o emprego nas indústrias de bens de capital; e os desembolsos totais de salários, juros, etc., permanecem inalterados. A sociedade teria, no entanto, o benefício de uma oferta crescente de bens de capital.

Esta análise tradicional, deve-se sublinhar com atenção, baseia-se no pressuposto primário de que todas as poupanças de dinheiro se tornam automaticamente em novo equipamento de capital. Tal pressuposto “implica que os homens de negócios expandirão sempre as instalações e o equipamento até ao limite máximo dos fundos disponíveis”. Afirmando a questão de outra forma, assume-se que a formação de novo capital produtivo não depende de forma alguma [sic] da procura de bens de consumo – que os homens de negócios aumentarão a oferta de bens de capital mesmo que a procura de bens de consumo esteja a diminuir. Por outras palavras, supõe-se que a procura de consumo e a construção de equipamento de capital são variáveis independentes.

KELTON: Muita gente nos dirá que o nosso sistema está naturalmente configurado para garantir que o nosso navio económico nunca navegue demasiado longe da sua estipulada rota. Estas pessoas pensam na economia como sendo uma máquina que vem equipada com o seu próprio mecanismo para transformar a poupança de uma pessoa na despesa de outra.

Agora, se isto for verdade, deveríamos ter sempre – salvo outros desajustamentos – pleno emprego, quer na produção de bens de capital, quer na produção de bens de consumo. Mas se não for verdade – se a expansão dos bens de capital depender de uma expansão simultânea na procura de bens de consumo – então um aumento da poupança pode ter resultados muito diferentes. Como é possível clarificar a questão básica assim levantada?

KELTON: Mas e se a nossa visão da forma como a economia funciona estiver errada? Que tipo de provas existem para apoiar a afirmação de que as empresas compram mais equipamento ou constroem mais fábricas quando os seus clientes estão a gastar menos?

Primeiro, procurámos mostrar, com base no raciocínio geral e na observação, que um aumento da poupança à custa da procura de consumo reduziria a construção de novos bens de capital, bem como de bens de consumo. Uma vez que os homens de negócios se preocupam em obter lucros, e uma vez que os lucros provenientes da utilização de novos capitais dependem do fabrico e venda de bens de consumo por esses estabelecimentos produtivos, defendemos que uma expansão das instalações e equipamentos não terá lugar de forma significativa quando a procura de consumo estiver em declínio e a situação geral do negócio como um todo não for propícia.

KELTON: O senso comum sugere que um homem de negócios não pediria normalmente dinheiro emprestado para expandir a sua atividade empresarial quando está a sentir que está perante um declínio nas vendas.

Em segundo lugar, examinámos os factos da nossa história industrial como uma verificação da validade deste raciocínio geral. As provas disponíveis mostraram conclusivamente que o novo capital é construído em qualquer escala significativa apenas durante períodos em que o consumo também está em expansão. Em períodos de declínio do consumo, a construção de novo capital também diminui acentuadamente.

KELTON: Mas não temos de confiar em comportamentos imaginados. As evidências mostram que as empresas gastam mais quando estão inundadas de clientes, não quando os seus clientes fecham as suas carteiras e poupam mais.

Concluímos desta análise que, se se pretende construir um novo capital, é necessário que haja um fluxo crescente de fundos não só através dos canais de investimento, mas também através dos canais do comércio a retalho e grossista. Isto levou inevitavelmente à questão: Como é possível financiar simultaneamente um aumento da produção de bens de consumo e de bens de capital? Mostrámos que um aumento simultâneo do fluxo de fundos através dos canais de consumo e investimento é possível graças à qualidade expansiva do nosso sistema bancário comercial, que é um fabricante de crédito. Num período de expansão, o crédito é de facto alargado tanto para fins de capital de exploração – para facilitar a produção de bens de consumo – como para fins de capital fixo – para financiar a construção de novas instalações e equipamentos.

Em ambos os casos, os fundos são oportunamente utilizados em pagamento de salários, materiais e outros custos de produção, e assim o rendimento monetário agregado recebido pelo povo é aumentado. Isto “torna possível gastar mais e poupar mais, e assim o fluxo de fundos através de canais de consumo e comércio é aumentado simultaneamente. Os factos relativos a investimentos e despesas de consumo provam que é este o caso.

KELTON: O crédito – não a poupança – faz o mundo andar. A ideia de que temos de sacrificar o consumo atual (ou seja, poupar mais hoje) pelo consumo futuro (ou seja, mais investimento empresarial hoje) está errada. O crédito bancário permite que o rendimento, o consumo, a poupança e o investimento cresçam juntos.

Em terceiro lugar, o estudo da nossa história industrial revelou que o crescimento do capital está intimamente ajustado e dependente de uma procura crescente de bens de consumo. As provas que se prendem com esta questão são de dois tipos.

Verificámos, em primeiro lugar, que a expansão ou contracção na construção de novos capitais é muito semelhante à expansão ou contracção nas indústrias de bens de consumo. Além disso, as flutuações na construção de bens de capital têm geralmente seguido, mais do que precedido, as flutuações na produção de bens de consumo.

KELTON: As empresas esperam para investir em novos capitais até verem uma forte procura dos seus produtos. A procura por parte dos consumidores do material que elas produzem é o guia mais importante.

A importância do controlo do consumo foi, contudo, revelada de forma mais conclusiva pela descoberta de que a taxa de crescimento de novas instalações e equipamentos num período de expansão industrial é ajustada à taxa de aumento da procura de consumo e não ao volume de poupança disponível para fins de investimento. As poupanças são feitas, em primeira instância, sob a forma de dinheiro. Este dinheiro é direcionado para canais de investimento; mas não se segue que será sempre utilizado na construção de novos bens de capital. Verificámos que entre 1922 e 1929 o volume de fundos disponibilizados para fins de investimento foi aumentando rapidamente, mas que o volume de títulos flutuantes para fins de construção de novas instalações e equipamentos permaneceu praticamente inalterado de ano para ano. Em 1929, o volume de novos títulos emitidos para fins de construção de capital efetivo mais hipotecas era inferior a 5 milhares de milhões, enquanto que o volume de fundos em busca de investimento era de cerca de 16 milhares de milhões.

As provas mostram assim conclusivamente que a construção do capital não varia diretamente com o montante de dinheiro de investimento disponível. É evidente que as decisões dos empresários com referência à construção de instalações e equipamentos adicionais são determinadas principalmente por referência ao estado dos mercados para os produtos que esses novos equipamentos de capital poderiam vir a produzir.

KELTON: A existência de uma maior poupança não é automaticamente canalizada para novos investimentos. A realidade é que os empresários não vão contrair empréstimos para fins de investimento a menos que sintam uma forte procura para os seus produtos.

Quando o volume da poupança de dinheiro é superior às necessidades para a construção de novos capitais, o que é que acontece com o excesso? A resposta é que os fundos procuram emprego de uma forma ou de outra – como, dependendo das diferentes condições ou situações económicas. Podem ser emprestados ao estrangeiro, como o foram grandes montantes no período de 1925 a 1929. Podem ser utilizados na compra de títulos já em circulação nos mercados, e ser absorvidos em licitações para aumentar os preços de tais títulos. Ou, como durante a depressão, quando novas emissões de títulos para fins de expansão do capital privado praticamente desapareceram, podem permanecer estagnadas em depósitos bancários, ser utilizadas no financiamento de défices governamentais, ou, mais uma vez, em licitações para aumentar os preços de emissões empresariais pendentes.

KELTON: os aforradores podem querer apenas reter as suas poupanças em dinheiro líquido. Podem gastar alguma dessa poupança na compra de títulos do Estado ou títulos estrangeiros. Ou podem colocá-lo na bolsa de valores, fazendo subir o preço das ações.

Um fluxo de poupanças canalizado para investimento em volume superior às exigências dos mercados de capitais é um fenómeno relativamente novo nos Estados Unidos. Ao longo da nossa história anterior, de facto até aproximadamente ao período da Guerra Mundial, as necessidades das empresas comerciais em termos de fundos para desenvolver novos capitais eram caracteristicamente superiores à oferta que emanava das poupanças do povo. A diferença entre estes dois valores foi suprida através da contracção de empréstimos no estrangeiro e pela expansão do crédito bancário comercial. Nos últimos vinte anos, no entanto, a situação foi profundamente alterada. Como resultado de um nível médio de rendimento mais elevado, e particularmente devido à concentração do rendimento, o volume de poupanças monetárias que fluem para os canais de investimento aumentou de tal forma que o saldo foi deslocado. Em vez de termos uma carência de dinheiro para investimento, temos um excedente.

KELTON: Este nem sempre foi um problema tão grande. Os rendimentos costumavam ser distribuídos de forma mais equitativa, e as pessoas gastavam a maior parte do que ganhavam, deixando pouco a mais para satisfazer o apetite de investimento da comunidade empresarial. Temos hoje uma economia muito mais rica, mas é também mais desigual. Isto torna mais difícil manter o investimento suficientemente elevado para manter a economia no bom caminho.

Este diagnóstico ou análise do mecanismo económico pode então ser resumido como se segue. O nosso estudo do processo produtivo levou-nos a uma conclusão negativa – nenhum fator limitativo ou sério impedimento a uma utilização plena da nossa capacidade produtiva pôde ser descoberto. A nossa investigação sobre a distribuição do rendimento, por outro lado, revelou um desajustamento de importância básica. A nossa capacidade de produzir bens de consumo tem sido cronicamente superior à quantidade que os consumidores podem, ou querem, comprar nos mercados; e esta situação é atribuível à proporção crescente do rendimento total que é desviado para os canais de poupança. O resultado é uma incapacidade crónica – apesar de dispositivos como vendas de alta pressão, créditos a prestações, e empréstimos para facilitar as compras no estrangeiro – de encontrar mercados adequados para absorver toda a nossa capacidade produtiva.

KELTON: Temos uma economia que cronicamente subestima o seu potencial. A desigualdade de rendimentos é em grande parte responsável por esta situação. Os muito ricos poupam demasiado, e por mais que tentemos, parece que não conseguimos fazer com que os pobres recuperem toda a folga, contraindo dívidas para financiar um maior consumo.

Num outro volume intitulado “A Formação do Capital”, as mesmas autoridades declaram (p. 146): “Tínhamos fundos disponíveis para investimento que variavam entre cerca de 8 ou 9 mil milhões em 1923-24 até 15 ou 16 mil milhões em 1928-29. Por outro lado, o volume de novas vias empresariais para fins produtivos, incluindo hipotecas, permaneceu praticamente estacionário em cerca de 5 mil milhões. O montante da poupança que passou para as mãos dos empresários para utilização na compra de materiais e na contratação de mão-de-obra para a construção de novas instalações e equipamentos foi assim de cerca de 5 mil milhões de dólares anuais. A questão é saber o que aconteceu ao saldo”.

KELTON: A falta de poupança não é o nosso problema. Demasiada poupança é.

Respondendo a esta pergunta (p. 151), eles declaram: “A resposta é que, para além da parte que foi para emissões estrangeiras, o excesso de poupança foi absorvido, dissipado, ao licitar os preços dos títulos em circulação. A poupança de dinheiro foi assim cada vez mais transferida para lucros especulativos em vez de para instalações e equipamentos produtivos. A inflação dos valores mobiliários resultou numa “estrutura financeira vulnerável, cujo colapso foi um importante fator que contribuiu para a depressão”.

Também afirmam (p. 152): “Quando o montante do rendimento monetário nacional que é poupado aumenta mais rapidamente do que o montante que é desembolsado através dos canais de consumo, há várias saídas possíveis para o excesso de poupança. Fundos não exigidos para a construção de novas instalações e equipamentos podem ser investidos no estrangeiro, como durante a Guerra Mundial e novamente em 1925-29. Podem ser absorvidos na bolsa para aumentar os preços dos títulos existentes, como nos últimos anos de expansão.

Podem estagnar em depósitos bancários – ou ir financiar défices governamentais – como tem sido o caso durante a depressão. Este fenómeno de excesso de poupança em relação às saídas produtivas, é discutido nas conclusões deste volume (p. 159 e seguintes): “O rápido crescimento da poupança em comparação com o consumo na década dos anos vinte resultou numa oferta de dinheiro para investimento bastante desproporcionada em relação ao volume de títulos em circulação para fins de expansão de instalações e equipamentos, ao mesmo tempo que o fluxo de fundos através de canais de consumo era inadequado para absorver – aos preços a que os bens eram oferecidos para venda – a produção potencial da nossa capacidade produtiva existente. O excesso de poupança que entrou no mercado de investimento serviu para inflacionar os preços dos títulos e para produzir instabilidade financeira. Um maior fluxo relativo de fundos através de canais de consumo teria conduzido não só a uma maior utilização da capacidade produtiva existente, mas também a um crescimento mais rápido das instalações e do equipamento.

KELTON: No período que antecedeu a Grande Depressão, as poupanças não foram canalizadas para novas fábricas e novas máquinas, mas para esforços especulativos que transformaram a nossa economia num casino.

O fenómeno de uma oferta excessiva de fundos nos mercados de investimento nunca tinha sido previsto. Não só se partira do princípio de que todas as poupanças seriam automaticamente transformadas em equipamento de capital, como parecia impossível conceber uma situação em que as poupanças pudessem tornar-se redundantes.

KELTON: A teoria económica dominante – que ensinou que nunca se pode poupar muito – estava errada. Malthus estava certo. Acabámos por ter uma economia que era capaz de produzir muito mais do que estávamos coletivamente preparados para comprar. Aqueles que acreditavam num mecanismo de autocorreção para transformar rendimentos não gastos (ou seja, poupanças) em investimento produtivo estavam errados.

Tal ponto de vista é suficientemente natural à luz da nossa evolução histórica. Na história inicial deste país, o volume de fundos disponíveis para fins de empreendimento capitalista era perenemente inadequado. Os homens de negócios tinham muitas vezes dificuldade em obter o capital líquido, a qualquer preço, com o qual pudessem expandir a dimensão das suas empresas ou explorar novos campos de empreendimento empresarial. Nos tempos coloniais, por exemplo, a escassez de fundos era uma fonte contínua de dificuldades e uma causa primária de irritação com o país-mãe, que se opunha à emissão de letras de crédito pelos governos coloniais. Até ao século XIX, o volume de poupanças disponibilizadas através de canais de investimento para as necessidades dos agentes económicos era insignificante em montante. A filosofia que enfatizava a importância fundamental do aumento da poupança era uma filosofia realista para essa época.

KELTON: Houve um tempo em que fazia sentido assumir que a comunidade empresarial absorveria avidamente toda e qualquer poupança e a colocaria em utilizações produtivas. De facto, o apetite por fundos excedentários para utilização produtiva largamente excedia a oferta.

No período desde a Guerra Civil, contudo, dois fatores combinaram-se para produzir uma mudança profunda nesta situação. O primeiro tem sido o crescimento de uma classe média abastada, com fundos disponíveis para investimento. O segundo tem sido o desenvolvimento do sistema bancário comercial, tornando possível uma expansão do crédito às empresas, tanto para fins de capital fixo como meios de pagamento para o trabalho. São estes desenvolvimentos que explicam o surgimento dos Estados Unidos como uma grande potência financeira.

KELTON: Tornou-se muito mais fácil assegurar financiamento depois de termos construído uma classe média forte e um sistema bancário que pudesse facilmente fornecer crédito quando as empresas quisessem expandir as operações.

Não só temos agora uma abundância de fundos para financiar as empresas americanas, como também somos capazes de estender os créditos ao mundo em geral. Neste desenvolvimento, seguimos o caminho que a Inglaterra percorreu numa data anterior. Na fase atual da evolução económica dos Estados Unidos, o problema do equilíbrio entre o consumo e a poupança é assim essencialmente diferente do que era em tempos anteriores. Em vez de uma escassez de fundos para as necessidades das empresas, tende a haver uma oferta excessiva de dinheiro para investimento possível, que é produtivo não em termos de novos bens de capital, mas de desajustamentos financeiros. A necessidade primária nesta fase da nossa história económica é um maior fluxo de fundos através de canais de consumo, em vez de poupanças mais abundantes.

KELTON: Resolvemos um problema mas criámos outro. Agora temos demasiada poupança e investimento insuficiente.

É, evidentemente, essencial que a economia tenha sempre uma ampla oferta de capital privado para investimento em empresas produtivas. Estou a falar de condições não como têm sido, ou como gostaríamos que fossem, mas como somos forçados a lidar com elas tal como as encontramos hoje. Estas condições incluem a lenta taxa de aumento da população, a imigração restrita, o desaparecimento da fronteira no Oeste e no Sul, e o comércio mundial restrito devido a tarifas e quotas, controlos cambiais e moedas flutuantes.

Estes fatores obrigam o governo a lidar com os problemas sociais e económicos numa base nacionalista, a um nível nunca antes prevalecido.

KELTON: O mundo mudou, e há um novo papel para o governo na nossa economia.

Concordo que, como regra geral do passado, tivemos uma escassez e não uma superabundância de capital de investimento em relação aos mercados produtivos, e que, portanto, a recuperação de depressões antes da última guerra foi quase invariavelmente liderada por novos investimentos. Questiono seriamente se esta regra, e a filosofia económica baseada nela, é válida nas condições atuais e prospetivas.

KELTON: Não podemos ficar sentados à espera que a comunidade empresarial – que é movida pelo motivo do lucro – nos conduza para fora do marasmo económico.

O ponto que quero referir é que seria do interesse do capital, em tais condições, defender tal tributação sobre uma ampla base de imposto sobre o rendimento como, de facto, sustentaria o poder de compra e, assim, contribuiria para uma produção sustentada e em expansão que, por sua vez, serve não só para proteger o investimento de capital existente, mas também para proporcionar um escoamento produtivo e rentável para a poupança privada acumulada.

A ideia não é de modo algum nova ou não experimentada, pois temos um exemplo da sua aplicação em Inglaterra e em algumas das outras democracias capitalistas, onde o nível de tributação é extremamente elevado e tenho em conta que estou tão pouco entusiasmado com o pagamento de impostos como vós – mas onde por várias despesas públicas se manteve um fluxo razoavelmente uniforme de poder de compra e a produção foi mantida a níveis continuamente elevados. Parece-me que isto é de muito interesse para o capitalista, porque ele acaba por ficar melhor no final, uma vez que os produtos da fábrica e as fábricas continuam a encontrar um mercado e um retorno dos lucros para o proprietário do capital, depois de pagar os impostos mais elevados, muito maior do que seria se a economia estivesse atolada no marasmo económico, se as fábricas tivessem de ser encerradas e o valor de todo o investimento fortemente depreciado.

KELTON: O capitalismo funciona com as vendas. Se não houver clientes suficientes para comprar o que as nossas empresas são capazes de produzir, os capitalistas irão sofrer. É da responsabilidade do governo fazer o que puder para manter um equilíbrio adequado entre poupança e investimento, por um lado, e consumo, por outro. O reequilíbrio da economia pode envolver o aumento dos impostos.

Reconheço, evidentemente, que a execução de tal política teria de ser muito habilmente gerida e bem calendarizada, e que, como já disse, tem de haver ao mesmo tempo todos os incentivos para o emprego de capital na nova produção – que tem de haver sempre uma ampla oferta de fundos para esse fim.

Assim, quando a oferta de poupanças é insuficiente para satisfazer as necessidades em expansão do país em novos capitais numa base lucrativa, os impostos sobre o rendimento devem ser reduzidos. Uma condição como esta pode desenvolver-se no futuro, pois percebo que o progresso técnico abre possibilidades indefinidas de produção, e a educação, ao causar necessidades mais refinadas e diversificadas, pode aumentar indefinidamente as necessidades do nosso povo. Mas em tempos em que a poupança é demasiado grande em relação ao escoamento produtivo, o governo deveria aumentar os impostos e aplicar as receitas a áreas deprimidas, à saúde pública e a fins educacionais, a melhorias públicas, à conservação e proteção dos recursos naturais – à preservação dos recursos, humanos e materiais, à prosperidade e não à concorrência contra a iniciativa privada.

Uma tributação mais elevada poderia muito bem ser aplicada, nestas circunstâncias, aos grupos de rendimento, digamos, entre $2.500 e $50.000, e às empresas, sempre, evidentemente, numa base de capacidade de pagamento. Parece-me que algumas das outras democracias capitalistas, como a Grã-Bretanha e a Suécia, geriram esta política geral bastante bem em termos de efeito líquido sobre as suas economias, e estou inclinado a pensar que é a sua maior salvaguarda económica na preservação da democracia.

KELTON: A redistribuição de rendimentos pode colocar dinheiro inativo no circuito produtivo apoiando empresas que de outra forma falhariam.

Como disse na introdução, esta peça é interessante não só pelo que diz, mas também pelo que não diz. O que se diz é que a economia dos EUA atingiu uma fase na sua evolução em que o desemprego crónico – devido a uma procura insuficiente – é o estado normal das coisas. O que não diz é que a autoridade monetária (Fed) pode fazer qualquer coisa para o corrigir. Na altura, tal como hoje, cabia principalmente às autoridades orçamentais (Congresso) compensar as deficiências da procura.

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 Stephanie Kelton: Professora de economia na Universidade Stony Brook em Nova Iorque e líder da MMT (Teoria Monetária Moderna), Stephanie Kelton aconselhou os senadores democratas do Comité Federal do Orçamento durante cinco anos, antes de se juntar à equipa criada por Joe Biden para conciliar o seu programa com o de Bernie Sanders. Desde então, tem aconselhado o Líder da Maioria do Senado Chuck Schumer e numerosos legisladores democratas. De acordo com os e-mails que recebe deles, a sua contribuição tem sido essencial para a mudança de mentalidade que parece ter ocorrido em Washington no que diz respeito aos défices públicos e à utilização do instrumento monetário para financiar planos de apoio massivo  à economia. No seu livro The Deficit Myth, traduzido do inglês para Les Liens qui libèrent, ela desconstrói de forma pedagógica e didática os principais mitos económicos relacionados com a moeda, a dívida e os défices. O leitor é convidado a realizar uma “revolução copernicana”, compreendendo que a despesa pública é um excedente para o sector privado; a economia não é limitada pelas finanças, mas pelos fatores de produção; a impressão de dinheiro é uma forma eficaz de garantir o pleno emprego. Perante a crise do coronavírus e a emergência climática, a MMT está a desfrutar de um sucesso crescente no outro lado do Atlântico. Poderiam estas lições ser aplicadas na Europa?

Para mais referências sobre Stephanie Kelton, ver wikipedia, aqui.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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