
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Parte IV – A titularização como meio para continuar na trajetória da crise
1. Uma oportunidade falhada de restabelecer a finança não-criativa, a finança segura, a finança sã – uma análise sobre a Iniciativa de Financiamento a Longo Prazo da União Europeia (7ª parte)
Por Finance Watch, em 15 de dezembro de 2014
Autor: Frédéric Hache. Editor: Greg Ford
(7ª parte)
Quando se define que “a titularização de alta qualidade” beneficiará de um tratamento prudencial mais atenuado temos de garantir que não estamos a criar novos riscos sistémicos. |
II. Titularização 2.0
Não somos contra a intermediação bancária e o financiamento através do mercado de capitais
A agenda da Comissão Europeia sobre Financiamento de Longo Prazo inclui uma série de iniciativas e da promoção de vários canais de financiamento, desde financiamentos coletivos [crowdfunding] até à titularização, fundos de capital privado, mercados obrigacionistas, mercados de ações, etc.
Não temos preferência quanto ao tipo de canal de financiamento, desde que cumpra o objetivo de proporcionar o financiamento sustentável e anti-cíclico que é necessário, que incentive o investimento a longo prazo e não crie mais riscos sistémicos e externalidades negativas do que as fontes alternativas de financiamento.
Alguns tipos de mercados de capitais e técnicas são mais sãos que outros, o mesmo sendo verdadeiro quanto aos modelos de negócio bancários
Por conseguinte, não nos opomos à intermediação bancária e ao financiamento através do mercado de capitais. Assim como há alguns canais do mercado de capitais que são mais sólidos e mais úteis do que outros para efeitos de concessão de crédito à economia real, o mesmo é válido para os modelos bancários. Também não estamos aqui a defender um regresso ao modelo do sistema bancário “a vida é maravilhosa” [82], dado que a moderna intermediação de crédito é complexa, mas sim a querer garantir a solidez do canal de financiamento. Nós olhamos para cada canal do ponto de vista da sua contribuição para o objetivo e de um ponto de vista quanto ao risco sistémico, uma vez que o crescimento sustentável implica reduzir a frequência de crises e tornar o sistema menos frágil.
A este respeito, algumas iniciativas são muito boas e complementares ao crédito bancário, como o lançamento de capital de arranque e o capital de risco, facilitando o acesso das empresas não-públicas ao mercado de capitais, mas algumas outras levantam algumas preocupações, tais como a reativação da titularização e a relacionada promoção do financiamento com base em títulos.
O restabelecimento de mercados de titularização sustentáveis tem sido uma prioridade na agenda do Grupo dos Vinte (G20), do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB), e de outras organizações internacionais e governos nacionais desde o início da crise [83]. Antes de discutir as potenciais preocupações relacionadas e o que é uma boa titularização, começaremos com uma síntese rápida do que é esta técnica para os leitores não-especializados.
1. Definição
Titularização é a prática de agregar num conjunto único uma série de empréstimos ilíquidos e depois por fragmentação ou reacondicionamento em parcelas (tranches) desse conjunto emitir títulos de dívida negociáveis que são vendidos a investidores que serão deles reembolsados quando os empréstimos subjacentes forem liquidados.
Existem diferentes tipos de operações de titularização, à medida que o processo evoluiu tornando-se mais complexo ao longo do tempo. Nesta secção, vamos dar uma visão simplificada, partindo da construção mais simples para as mais complexas operações de titularização que foram encontradas no auge da crise.
a. A titularização em termos básicos
Um banco irá selecionar e reunir em conjunto uma série de empréstimos homogéneos entre os que ele próprio originou. Os empréstimos serão vendidos a um veículo para fins especiais (SPV), uma entidade jurídica de insolvência à distância especialmente criada para a operação [84]. O banco originador dos empréstimos irá fornecer ao SPV declarações e garantias sobre a qualidade dos empréstimos.
O veículo SPV, então, emitirá títulos de dívida negociáveis que serão vendidos a investidores, onde os investidores serão pagos pelos reembolsos dos empréstimos subjacentes. O dinheiro obtido através desta emissão de títulos permitirá ao SPV pagar os empréstimos ao banco originador.
São nomeados uma entidade gestora – geralmente o banco que originou os empréstimos – encarregue do processamento dos pagamentos e interagindo com os mutuários, e um administrador responsável pela gestão do SPV. Os devedores finais, as pessoas que contraíram os empréstimos, não precisam sequer de saber da venda, eles continuam a fazer os seus pagamentos ao banco com quem contraíram os referidos empréstimos, mas estes pagamentos agora fluem para os novos investidores. A qualidade dos títulos será então avaliada pelo menos por duas agências de notação de crédito e vendidas a investidores.
Como os empréstimos foram vendidos, o risco de crédito foi transferido para investidores que arcam com o risco dos empréstimos se estes não forem reembolsados. Este tipo de “transferência” (pass-through) da titularização proporciona, assim, ao banco emissor do crédito inicial a obtenção de meios para financiamentos adicionais e a redução de riscos, permitindo-lhe assim emitir mais novos empréstimos.
b. A titularização do financiamento estruturado
Tipos de titularização mais complexos envolvem vários mecanismos para melhorar a notação dos títulos emitidos
Vários mecanismos de melhoria da qualidade do crédito podem ser adicionados a fim de reduzir o risco e melhorar a notação do crédito dos títulos emitidos e, portanto, incentivar mais os investidores. O objetivo de valorizar o crédito é, como o nome sugere, emitir títulos que são menos arriscados por se considerarem melhor cobertos, e, assim, terem uma melhor notação do que os empréstimos subjacentes.
O primeiro de tais mecanismos é chamado de subordinação ou divisão em tranches: como antes, um banco gerador dos empréstimos juntará uma série de empréstimos por si concedidos e vende-os como pacote a um SPV. No entanto, há aqui uma complexidade adicional que é o facto de que o banco não irá emitir nenhum tipo de garantia contra o pool de empréstimos, mas vários tipos de títulos com diferentes senioridades, de forma muito semelhante à que é feita pelos bancos com a emissão de capital, dívida subordinada e dívida sénior.
Uma entidade chamada subscritor ou segurador (underwriter) decidirá quantas parcelas ou tranches e em que proporções devem ser emitidas, sobre cada pool de empréstimos, com base no apetite dos potenciais investidores, nas notações emitidas pelas agências de notação e sobre a qualidade dos empréstimos subjacentes. Cada tipo de título terá a sua própria classificação.
Tomemos um exemplo. Seja um grupo de 1000 empréstimos no valor de €10.000 cada, em média. A SPV emite três tranches de títulos, a chamada equity (capital) tranche no valor de €500.000, uma tranche subordinada no montante de €1.500.000, e uma tranche sénior no montante de €8.000.000. A parcela dita equity tranche vai ser a primeira a absorver os não-reembolsos de todo o portfólio. É, portanto, o titulo mais arriscado e, consequentemente, é aquele que aufere a mais elevada taxa de juros. Se os não reembolsos dos empréstimos do pool em análise excederem os €500.000, as perdas do pool de empréstimos acima dos €500.000 será então absorvida pela tranche seguinte em grau de subordinação, ou seja, será absorvida pela parcela subordinada. A tranche sénior irá absorver as perdas somente quando as perdas excederem também o valor da parcela subordinada. Consequentemente, esta é a parcela menos arriscada uma vez que esta é protegida pela existência das tranches ditas mais subordinadas, ou juniores, daí que seja a tranche com a mais baixa remuneração de investimento e que tem a melhor notação.
A parcelização ou divisão em tranches dos títulos emitidos a partir do pool permite ao emitente ter uma grande proporção dos títulos por si emitidos com uma notação melhor, o que torna mais fácil vendê-los aos investidores. Dizendo de outro modo, a fragmentação dos títulos emitidos a partir do pool em camadas (as tranches) também permite aos bancos titularizar empréstimos de menor qualidade através do pool da titularização. O ato de dividir os títulos emitidos a partir do pool por camadas, (o tranching) é assim chamado um mecanismo de valorização do crédito na medida em que permite a criação de títulos com um risco menor do que os empréstimos subjacentes.
A melhoria da qualidade dos créditos pode também ser conseguida através da sobrecolateralização, ou seja, emitindo menos títulos que o valor do total do pool de empréstimos que lhe serve de subjacente, a fim de criar um amortecedor contra eventuais perdas. Existem outros mecanismos, tais como o spread em excesso (no qual o restante pagamento líquido de juros dos empréstimos são mantidos numa conta de reserva para compensar perdas potenciais), deslocando os juros (atribuição de pagamentos de empréstimos em prioridade às tranches seniores ao longo dos primeiros anos, a fim de manter a subordinação) ou ainda os detonadores de resultados (pagamento acelerado do principal quando os incumprimentos de pagamento dos empréstimos atinge um determinado nível).
Os mecanismos de melhoria da qualidade do crédito também incluem mecanismos externos, tais como a compra de uma garantia de uma companhia de seguros ou a obtenção de uma garantia do banco que gerou os empréstimos. Estes mecanismos de valorização do crédito “são de facto o ‘elixir mágico’ que permite aos bancos converterem pools de empréstimos ou hipotecas ainda que mal notados pelas agências de notação em títulos altamente notados ou seja, altamente avaliados” [85] . Isso explica também “como ao longo de menos de uma década, a titularização criou mais títulos notados AAA” que as obrigações das empresas e a dívida soberana combinados entre 1997 e 2007.
c. Os veículos ou canais de títulos comerciais garantidos por ativos [Asset-backed commercial paper – ABCP], liquidez e transformação de maturidades
Os canais ou condutas (conduits) são entidades estabelecidas para titularizarem empréstimos de forma contínua
Neste tipo de titularização, o SPV que comprou os empréstimos depois vende-os a uma conduta ABCP (assim chamado porque os títulos por este emitidos são papel comercial de curto prazo) um veículo com fins especiais organizado por um ou vários bancos, a fim de lhes comprarem os empréstimos e de se financiarem através da emissão de títulos por tranches ou parcelas de notação diferenciada.
Diferentemente dos títulos tendo ativos como colateral, estas condutas ou canais são atividades em contínuo, pois estão permanentemente a serem capitalizados, têm uma equipa de gestão ativa e os seus ativos estão sempre a serem renovados e o seu valor a flutuar.
Uma outra diferença é que, enquanto nos ABS a garantia é principalmente homogénea, estes canais ABCP compram uma enorme variedade de ativos que vão desde cartas de crédito a hipotecas sobre investimentos e CDOs altamente cotados.
Outra diferença importante é que os valores mobiliários por eles emitidos, muitas vezes têm um prazo de vencimento mais curto (30 dias em média) do que o vencimento médio de seus ativos, permitindo-lhes ganhar o spread entre ambos, tal como os bancos o fazem. O desequilíbrio criado por essa transformação de maturidades expõe o veiculo a um risco de liquidez no caso de não poderem renovar os seus passivos. Para enfrentar isso, um patrocinador – geralmente o banco que criou o veiculo especial ou um gestor de ativos – fornece um suporte parcial ou total de liquidez ao veículo criado, além da gestão dos seus ativos. Devido a isso, quando o patrocinador é o banco originário do risco este mesmo risco não fica totalmente transferido para os investidores externos.
Os ativos subjacentes que tenham beneficiado de uma valorização do crédito ao nível do SPV podem ainda ser mais valorizados ao nível do conduit.
d. Ainda maior complexidade
As obrigações de dívida garantidas (as CDOs) de títulos garantidos por ativos, são um tipo de titularização que teve grande incidência antes da crise. Embora originalmente os ativos subjacentes das CDOs fossem empréstimos e obrigações emitidas pelas empresas, estes títulos evoluíram ao longo do tempo passando a incluir títulos garantidos por ativos. A estrutura é semelhante a uma titularização padrão, mas inclui passos adicionais:
- O autor (o banco que originou os empréstimos) irá selecionar os empréstimos a titularizar em ABS. Os ativos são comprados por um SPV.
- Um subscritor, um avaliador de risco, irá designar os títulos a serem emitidos, decidindo sobre a valorização do crédito necessária para obter os ratings desejados para cada tranche.
- O SPV emitirá, então, várias parcelas (tranches ) de títulos garantidos por ativos.
- Algumas parcelas do ABS serão então reunidas e vendidas a um outro SPV, onde lhes será adicionado mais reforço de crédito.
- O segundo SPV emitirá, então, várias parcelas de obrigações de dívida colateralizada que serão avaliadas e vendidas a investidores.
- Os investidores incluem hedge funds, bancos de investimento e fundos de pensões. Alguns destes investidores, por sua vez financiam as suas compras através da emissão de notas de curto prazo ou de empréstimos de curto prazo no mercado a partir de entidades como fundos do mercado monetário.
Algumas estruturas vão mais longe e titularizam tranches de CDO em CDOs feitos a partir de outros CDOs (também chamado CDOs ao quadrado), acrescentando ainda mais complexidade e alongando o número de intermediações ou de passos na titularização.
O número de operações no processo varia de acordo com a estrutura. O número de passos ou de agentes de intermediação ou a quantidade de melhoria da qualidade do crédito é geralmente inversamente proporcional à qualidade dos ativos subjacentes: quanto mais baixa for a qualidade, mais são os passos necessários, ou mais são as valorizações nas posições de crédito para “melhorar” a sua qualidade de crédito e obter uma boa classificação. Normalmente, um CDO de ABS existe para retitularisar e reforçar ainda mais as tranches de ABS mal cotadas.
Alguns outros tipos de CDOs chamados CDOs sintéticos não adquirem quaisquer empréstimos, mas são, em vez disso, a réplica do risco de um determinado conjunto de empréstimos através da venda de seguros contra o eventual incumprimento desses empréstimos. Neste caso, o SPV vai vender contratos de seguros feitos sob medida, ou seja caso a caso, chamados credit default swaps, os famosos CDS, contra um pool específico de empréstimos. Ao fazê-lo, o SPV ficará exposto a um risco de crédito semelhante e obtém um retorno semelhante sem ter que comprar os empréstimos. Uma tal estrutura não visa a concessão de financiamento, mas a transferência de risco ou visa ganhar exposição a ativos específicos que não são sua propriedade. Porque não há nenhum limite no número de CDOs que podem fazer referência a uma determinada carteira de activos, cada SPV pode potencialmente criar mais CDOs que o número de hipotecas já existentes poderia permitir, ampliando-se assim o processo de impacto de perdas potenciais com essas hipotecas.
O processo de titularização imita as funções bancárias clássicas de crédito, maturidade e transformação de liquidez. A diferença fundamental é que a intermediação bancária executa estas funções sob uma única entidade, enquanto que na titularização os riscos são suportados por uma cadeia de múltiplas entidades. Outra diferença fundamental é que a banca tradicional é apoiada por garantias públicas explícitas, tais como os regimes de garantia de depósitos e de acesso ao banco central como um emprestador de última instância.
Como o processo transforma os ativos não líquidos, tais como os fluxos futuros de tesouraria, de créditos em valores mobiliários negociáveis líquidos, tudo isto envolve a transformação de liquidez. Como os ativos titularizados que foram criados são muitas vezes financiados numa base mais curta do que a sua maturidade, tal facto leva a que também se envolva a transformação de maturidades, em que o financiamento pelo mercado secundário desempenha o papel que os depósitos têm na banca tradicional. Por último, o processo envolve também a transformação de crédito através dos mecanismos de reforço, melhoria, de crédito supracitados.
Em comparação, nos bancos tradicionais a transformação de crédito é apoiada pela diversificação (mutualização do risco através de uma grande carteira diversificada de empréstimos) e uma subordinação limitada (uma vez que o capital dos bancos absorve as perdas em primeiro lugar e, portanto, protegem os depositantes). A maturidade dos bancos tradicionais e a transformação da sua liquidez é apoiada pelo acesso explícito e direto acima mencionado dos mecanismos de proteção do sector público.
Desde que ofereça uma corrente relativamente previsível de fluxos de caixa futuros, qualquer ativo pode ser titularizado, desde hipotecas aos empréstimos concedidos a estudantes como também impostos não pagos devidos ao governo italiano ou até mesmo futuros royalties sobre álbuns de música, como o fez o cantor de rock David Bowie em 1997. [86]
(continua)
Finance Watch, A missed opportunity to revive “boring” finance? A position paper on the long term financing initiative, good securitisation and securities financing. Texto disponível em: http://www.finance-watch.org/press/press-releases/995fwposition-paper-on-ltf-securitisation-and-securities-financing
Notas
[82] Nos termos do filme de 1947 de Frank Capra: Capra, F., It’s a wonderful life, Liberty Films, USA 1947
[83] BIS, Basel Committee for Banking Supervision, Report on asset securitisation incentives, 2011a
[84] N.T. Um veículo/entidade para fins especiais/entity (SPV/SPE) é uma empresa subsidiária com uma estrutura de ativos e passivos e um estatuto jurídico que torna seguras as suas obrigações mesmo se a empresa mãe entrar em falência. Um SPV/SPE é também uma empresa subsidiária estabelecida para servir de contraparte em swaps e outros instrumentos derivados de crédito sensíveis. Apesar de os SPVs/SPEs serem utilizados para isolar o risco financeiro, em virtude das lacunas contabilísticas, estes veículos podem tornar-se numa devastadora maneira financeira de os CFOs esconderem dívida, como no caso da falência da Enron. Em https://www.investopedia.com/terms/s/spv.asp
[85] Federal Reserve Bank of New York, Mandel, B.H., Morgan, D. and Wei, C., The Role of Bank Credit Enhancements in Securitization, Economic Policy Review, Volume 18 Number 2, July 2012b, pp. 35-46
[86] Chisholm, A., An introduction to capital markets: products, strategies and participants, Wiley Finance, 2009