Os Planos de Recuperação e Resiliência da União Europeia e dos Estados Unidos no contexto das Democracias em perigo – 2ª parte – O Plano de Recuperação e Resiliência em Itália: 2.5. Que ideia de país tem Mario Draghi? Por Maria Luisa Bianco

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

 

  Por Maria Luisa Bianco

Publicado por em 26 de Março de 2021 (ver aqui)

 

Desde o plano de vacinação até à escola. Desde o ambiente até ao trabalho. Dos investimentos públicos às reformas e à igualdade de género. Por detrás de palavras de retórica aparentemente genérica, as propostas de Draghi escondem uma visão da sociedade semelhante à de Thatcher.

 

Dada a forma extraordinária como o governo Draghi foi criado, graças a um acto do Presidente da República que Gustavo Zagrebelsky definiu como “democracia a partir de cima”, é preciso questionar se os Senadores e os Deputados foram realmente colocados em posição de expressar o seu voto sobre o conteúdo programático ou não, em vez de outros objetivos não declarados e talvez não declaráveis.

À primeira vista, as propostas de Draghi parecem ser declarações de princípio que são tidas como óbvias no discurso público e, no entanto, por detrás de palavras de retórica aparentemente genérica encontra-se uma visão de mundo e uma conceção de sociedade bem definidas. E é sobre estas que acredito ser necessário discutir e tomar uma posição.

Uma leitura atenta mostra de facto que todas as intervenções anunciadas têm o único objetivo de aumentar o PIB, mesmo quando o âmbito não se refere ao perímetro do sistema económico. Tal como Margareth Thatcher, Draghi também acredita que “não há sociedade”, mas apenas uma máquina especializada na produção de riqueza, “custe o que custar”. A Política está resumida às “alavancas de despesa” utilizadas para assegurar as condições favoráveis à implementação da iniciativa dos investidores privados. De cidadãos portadores de direitos e propósitos que estávamos sob a ilusão de ser, descobrimos que nos tornámos nada mais do que unidades de capital humano a preservar do vírus com vacinas, reforçadas com formação e incentivos ao emprego, mas apenas nas áreas em que “se pretende revitalizar o país”. O trabalho não é o princípio fundador da cidadania democrática do Artigo 1 da Carta, mas um recurso a ser empregue eficientemente. Nada mais.

Plano de vacinação. Para a conclusão da campanha de imunização, o programa baseia-se exclusivamente em medidas extraordinárias e de emergência (exército, proteção civil, voluntários), concebidas para deixar o país despreparado para a replicação que será necessária a partir do próximo outono-inverno e, ainda mais, face a futuras pandemias.

É paradoxal que, em plena emergência, enquanto o país se encontra no topo de todos os rankings internacionais de taxa de letalidade, não seja reservado um espaço à saúde nem mesmo no capítulo dedicado às reformas, onde não se prevê qualquer intervenção estrutural, senão – de forma genérica – na medicina territorial, negligenciando o sistema hospitalar e a relação entre o público e o privado. Evidentemente, ao Governo basta completar o plano de vacinas para fazer a economia recuperar o fôlego, sem abordar os graves problemas que afligem estruturalmente o nosso sistema de saúde. Um vírus epidémico prejudica a produção e deve ser erradicado rapidamente, enquanto outras doenças não merecem estratégias mais eficazes de contenção e tratamento.

Escola. A Itália tem uma das mais baixas taxas de escolarização dos países da OCDE, o pessoal docente mais envelhecido e o rácio professor/estudante mais desfavorável, edifícios escolares na sua maioria em muito más condições e não adequados a novas formas de ensino. O abandono escolar precoce, que já era muito elevado, aumentou acentuadamente, afetando especialmente os socialmente desfavorecidos, especialmente nas regiões do sul. Surpreendentemente, nenhuma proposta parece abordar estes problemas, revelando mais uma vez uma abordagem puramente de emergência, que se limita a propor a recuperação das horas de ensino perdidas, como se se tratasse de uma dívida a pagar ou de uma culpa a expiar.

Mais específicas são em vez disso as propostas sobre os conteúdos do que é sempre apenas indicado (e evidentemente também conceptualizado) como “formação” (para o trabalho), em vez de educação, instrução, cultura. Para a escola secundária, são propostos “enxertos genéricos de novas disciplinas e metodologias para combinar competências científicas com as das humanidades e do multilinguismo” e, este é o ponto importante, é dada uma centralidade sem precedentes aos institutos técnicos industriais, que não são certamente aqueles altos níveis de ensino nas chamadas disciplinas STEM, no campo científico, pelo contrário, fundamentais para um salto tecnológico no nosso país.

No que diz respeito às universidades, propõe-se genericamente que estejam alinhadas com as necessidades da globalização e as novas estruturas do mercado de trabalho, não estando previsto qualquer investimento adicional ou ajustamento do número de professores aos standards de outros países da OCDE. Finalmente, a frase “sem excluir a investigação fundamental” – uma verdadeira desculpa que ninguém exigiu ou lapsos freudiano – revela um desconhecimento preocupante da lógica do funcionamento da ciência e das suas relações com as aplicações industriais, ou, mais provavelmente, uma adesão incondicional à divisão neoliberal internacional que atribui à Itália um papel de segunda ordem, como as conclusões dramáticas das corajosas estratégias industriais de Enrico Mattei e Adriano Olivetti demonstraram no século passado.

Para além da pandemia. À questão ambiental, que deveria ser um ponto central de reflexão sobre o futuro, apenas são consagradas algumas linhas num parágrafo diverso, e que fala genericamente de uma nova abordagem que “vê o centro do ecossistema em que todas as ações humanas se desenvolverão”, enquanto nada é dito sobre as estratégias e investimentos necessários para reconverter o nosso sistema económico e social numa lógica de menor falta de sustentabilidade ambiental.

A escassa orientação verde é também evidente nas passagens da política económica, onde é feita referência a objetivos de “crescimento” mas não a mudanças de paradigma que possam garantir a sustentabilidade. A única indicação genérica de mudança a ser seguida diz respeito ao turismo, que deve adquirir a capacidade de “não desperdiçar cidades de arte, lugares e tradições”. A reconversão energética, o modelo de transportes, a exploração de subsolo, comboios de alta velocidade, grandes obras desnecessárias e poluentes, pecuária intensiva, agricultura industrial não são sequer mencionados.

Em vez disso, há uma menção das escolhas difíceis que o governo terá de fazer sobre “que actividades económicas proteger e quais acompanhar na mudança”, mas não a lógica subjacente. “A resposta da política económica às alterações climáticas e à pandemia terá de ser uma combinação de políticas estruturais que facilitem a inovação, políticas financeiras que facilitem o acesso ao capital e ao crédito por parte de empresas capazes de crescer, e políticas monetárias e orçamentais expansionistas (Draghi esqueceu-se de que já não é Presidente do BCE?) que facilitem o investimento e criem procura para as novas actividades sustentáveis que foram criadas (sem qualquer indicação de como e por quem devem ser criadas). A conclusão – a única passagem em todo o documento a mostrar entusiasmo – parece ser novamente o resultado de uma confusão de papéis: “Queremos deixar um bom planeta, não apenas uma boa moeda”.

Sobre o tema do trabalho – um problema que se tornou dramático no nosso país – não há qualquer referência ao funcionamento do mercado, à precariedade, à economia gig assente em trabalho precário, à selva contratual, aos baixos salários que provocam o fenómeno dos trabalhadores pobres, e apenas estão previstas intervenções sobre políticas laborais ativas. A criação e configuração do trabalho são, portanto, deixadas inteiramente ao funcionamento das forças de mercado, enquanto o Governo se reserva a tarefa exclusiva de assegurar a rápida expansão de alguns sectores para compensar a contração de outros provocada pela pandemia. Uma vez que não são explicitados os critérios com base nos quais serão decididos os sectores “submersos e resgatados”, é preciso questionar como é que o Parlamento poderia ter concedido a sua confiança sem transparência sobre um ponto tão crucial. Podemos realmente aceitar que Mario  Draghi deva decidir sozinho quais as empresas – entre elas, muito provavelmente, os artesãos e as pequenas empresas -, enfraquecidos pelas restrições impostas pelas políticas para conter a pandemia, que devem sucumbir em benefício da grande distribuição e do comércio eletrónico? Que partido alguma vez apresentou ao eleitorado um programa neste sentido?

Igualdade de género. A única igualdade que o Presidente do Conselho prevê é a igualdade no trabalho, enquanto as desigualdades em matéria de direitos sociais são completamente ignoradas. As propostas visam apenas a valorização neoliberal do capital humano feminino que é hoje subutilizado – também para o desenvolvimento do Sul – através de dois tipos de intervenções: (1) “induzir as mulheres a escolher” (a justaposição dos dois termos é perturbadora) para se “formarem nas áreas em que (o Governo pretende) relançar o país”, (2) tornar o trabalho remunerado das mulheres “mais competitivo” do que o trabalho familiar, através da redução da diferença salarial e das intervenções de Welfare.

Investimentos públicos. A par de intervenções não especificadas para a manutenção e proteção do território, estão previstos investimentos na preparação técnica, jurídica e económica dos funcionários públicos, com atenção circunscrita às competências necessárias para a gestão do Plano de Recuperação. Por outro lado, as condições gerais em que o sector público em Itália se encontra são negligenciadas: é subdimensionado em comparação com outros países europeus e da OCDE, com o pessoal mais antigo e menos instruído. Qualquer política que vise melhorar a sua eficácia, mas também a sua capacidade de intervenção, deve remediar estas deficiências estruturais através de planos massivos e rápidos de recrutamento qualificado. Paradoxalmente, o Programa Draghi pede aos gabinetes que eliminem urgentemente o atraso, mas não compromete o Governo a fornecer os recursos humanos necessários. Mesmo os investimentos anunciados para a digitalização teriam pouco efeito sem pessoal adequado em número e profissionalismo. Embora os primeiros passos da Ministra Brunetta pareçam revelar uma maior consciência do estado de negligência em que a Administração Pública se encontra após décadas de austeridade, os rápidos planos anunciados para o recrutamento de jovens qualificados arriscam-se a ser apenas soluções de emergência tendo em vista o lançamento do Plano de Recuperação, em vez de intervenções estruturais com uma visão orgânica, pelo menos a médio prazo.

Reformas. No capítulo que a estas é dedicado , as reformas anunciadas têm o objetivo exclusivo de melhorar as condições de funcionamento do sistema económico e atrair investimento estrangeiro: criar maior certeza das regras e maior concorrência, acelerar o sistema de justiça civil em conformidade com as exigências da UE (não uma palavra, em vez disso, sobre o sistema de justiça penal), reduzindo a carga fiscal sobre os escalões de rendimento mais altos e mais baixos (os ricos e os pobres). Desigualdade, equidade, qualidade de vida, direito ao estudo e aos cuidados estão completamente fora do horizonte político. Pelo contrário, a reforma fiscal prevista favorecerá o agravamento das desigualdades, devido à maior concentração da carga fiscal na classe média e à redução dos benefícios sociais causados pela contracção das receitas fiscais, estimada em dois pontos do PIB.

Concluo recordando que onde o documento clarifica o posicionamento na política externa, para além de enfatizar a fé europeísta e atlantista, indica sete países estrangeiros com os quais pretendem reforçar as relações, dois deles são paraísos fiscais e de má reputação (Malta e Chipre), enquanto outro, a Turquia, é citado como um parceiro e aliado valioso da NATO, mas é mais conhecido pela maioria como um exemplo perigoso do novo “Sultanato” e mesmo da sangrenta repressão da democracia.

Giuseppe Conte e Enrico Letta, que parecem querer assumir o comando do campo progressista, deveriam começar por aqui para esclarecerem em que tipo de sociedade/país se querem empenhar em construir.

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A autora: Maria Luisa Bianco, é professora ordinária de Sociologia na Università degli Studi del Piemonte Oriental. Na Università degli Studi del Piemonte Oriental é presidente do curso de mestrado, membro da comissão de investigação e membro da Comissão de definição de critérios para a atribuição de incentivos pontuais. Áreas de investigação: desigualdade de género, desigualdade na educação, trabalho, desenvolvimento. Licenciada pela Faculdade de Artes e Filosofia da Universidade de Turim em 1972 com uma tese em Sociologia intitulada: Lo sviluppo del sottosviluppo nel mezzogiorno. No Instituto de Sociologia da mesma Faculdade, foi bolseira ministerial de 1972 a 1974 e depois “trabalhadora por contrato” de 1974 a 1981, quando foi nomeada Investigadora. Autora de várias obras, nomeadamente Donne al Lavoro, Il Sapere Tecnologico, e de artigos como Crisi economica e disoccupazione giovanile: valutazione del consenso verso politiche di intervento pubblico; Riflessioni sulle famiglie nella trasformazione della società italiana(2015); COVID-19. Perché la sociologia può essere utile anche di fronte a un’epidemia: storia di una scoperta (2020); COVID 19 La Fase 2 e alcune questioni sul report governativo (2020).

 

 

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