A minha neta e a crise no Serviço Nacional de Saúde. Ainda algumas reflexões mais sobre a democracia, em Portugal e na União Europeia – Anexo 7: A arquitetura da União Europeia, uma arquitetura de costas voltadas para a Democracia – “A Itália representa um espelho de uma Europa esfarrapada”, por Orsola Costantini

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Anexo 7 : A arquitetura da União Europeia, uma arquitetura de costas voltadas para a Democracia: “A Itália representa um espelho de uma Europa esfarrapada”, um texto de Orsola Costantini

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Este texto de Orsola Costantini fala-nos da evolução da arquitetura da União Europa, em particular depois da crise, e mostra-nos como é que os Estados membros, basicamente os mais fracos, vão perdendo poder face à força e ao constrangimento imposto pela forma dos tratados.

A autora afirmara já em dezembro de 2017 (vd. A política económica do Pacto de Estabilidade e Crescimento, Institute for New Economic Thinking, New York), texto citado no anexo 1): “os mecanismos de governança da União foram (e em grande medida permanecem) mais um espaço para negociações entre representantes políticos dos países membros e de outros grupos bem organizados e poderosos, do que expressões unificadas de sentimentos políticos populares e de políticas”.

No texto que abaixo apresentamos (A Itália representa um espelho de uma Europa esfarrapada), diz a autora:

Desta forma, a economia dominante, dos poderes estabelecidos, tem restringido (e continua a restringir) escolhas políticas, retirando aos eleitorados a sua autonomia no julgamento político e moral. Este é um jogo perigoso, uma vez que a única maneira que os eleitorados marginalizados têm para expressar a sua raiva, ansiedade e impotência é escolhendo as forças que se autodefinem como forças “antiestablishment”. Isso aconteceu não apenas na Itália, mas também em outros lugares da zona euro e na Grã-Bretanha também. Os EUA estão a sofrer as consequências da sua versão própria da mesma história. Ninguém sabe dizer aonde isto nos pode levar.”

E quanto ao papel de denúncia que os economistas devem assumir, diz-nos:

Os economistas são muito responsáveis por esta desordem: eles têm a responsabilidade de ajudar a melhorar a atual situação de apuro. A única maneira de o fazerem é criando espaço para deliberação política relevante sobre políticas alternativas à austeridade orçamental, à desigualdade elevada e aos empregos flexíveis e mal pagos. Eles têm que abandonar a “linha partidária” oficial da teoria e prática económicas – um Politburo que transforma a economia numa serva inútil que proporciona a autovalidação para as elites e contribui para bloquear o debate e a abertura democrática que são vitais a uma sociedade funcional e justa”.

Eis então o texto de Orsola Constantini.

JM

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A Itália representa um espelho de uma Europa esfarrapada

Publicado por Institute for New Economic Thinking, em 14 de junho de 2018 (este texto foi publicado em A Viagem dos Argonautas em 10 de agosto de 2018)

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A eleição do governo de direita e populista da Itália mostra as deficiências económicas e democráticas do projeto Europeu e dos seus rivais nacionalistas.

Os partidos “populistas” e de direita estão a ganhar terreno em toda a Europa, com uma mensagem de ceticismo sobre o euro e de pura desconfiança do chamado establishment político europeu. A eleição geral italiana realizada no dia 4 de março de 2018 não foi exceção: o partido democrático fortemente pró-Europa do anterior primeiro-ministro Matteo Renzi registou uma baixa histórica, obtendo 18,9% dos votos (um declínio de 6,5 pontos percentuais em comparação com as eleições anteriores). Renzi quase que assume esta derrota mais como uma medalha, como prova da sua lealdade à UE, do que como um sinal da sua falha em resolver ou em aliviar os problemas do país. O movimento populista 5 Estrelas (M5S) tornou-se o maior partido na Itália (com 32,2% dos votos) e o partido da ala da direita xenófoba Lega Nord obteve ganhos eleitorais substanciais (17,7% dos votos). Mas o resultado, um Parlamento suspenso, não indicou uma coligação eleitoral suficientemente forte para governar por si só, desencadeando um processo mais longo que o usual para se organizar uma coligação governamental. Finalmente, após 90 dias de negociações, o Movimento 5 Estrelas e a Liga Norte chegaram a uma difícil aliança para um governo de coligação. Estes dois partidos têm em comum uma forte retórica contra o tradicional establishment político, embora a Liga tenha estado no governo repetidamente no passado e tenha entrado nas eleições deste ano numa coligação com Forza Italia, o partido de Silvio Berlusconi. Tanto o M5S como a Liga Norte partilham a convicção de que o crescimento económico italiano não pode ser reavivado dentro das condições políticas impostas pela zona euro.

Assim que M5S e Liga Norte anunciaram que Paolo Savona, de 82 anos de idade e um “eurocético”, seria a sua nomeação para o cargo do Tesouro, todos os diabos do inferno foram postos à solta em Roma, Bruxelas, Berlim e Paris. O Presidente da Itália, Sergio Mattarella vetou a proposta, argumentando que ele tinha que “proteger as poupanças do povo italiano.” O Comissário de Orçamento da UE, Gunther Oettinger, comentou que “os mercados vão ensinar a Itália a votar corretamente, a votar na coisa certa.”

A ameaça pode ser mesmo real: a criação artificial de situações de emergência económicas e financeiras tem frequentemente moldado a distribuição do poder na zona euro, agora fortemente centrado nos credores e nos países excedentários. Mas a dependência da zona euro de um grande aparato de regulações quase técnicas aponta para a ausência de uma hegemonia bem definida e bem estabelecida.

A última crise pode ser descrita basicamente como uma luta para redefinir o locus de poder entre Estados-nação, instituições supranacionais e o mercado na era pós-Bretton Woods.

Esta luta não é única para a UE, mas num contexto global de redução das despesas sociais públicas e da regulação, as instituições da UE intensificaram esta tendência, proporcionando um conveniente “constrangimento externo” aos políticos nacionais que praticaram a austeridade orçamental. Mas um olhar mais preciso na evolução da União esclarece que a austeridade era de facto uma preferência nacional e uma arma política para interesses investidos dentro e para além das nações. Por exemplo, as regras orçamentais têm sido muitas vezes um locus de negociação política, onde as diferentes preferências podem ser validadas pela formulação de estimativas adequadas. Governos de diferentes cores participaram de boa vontade no jogo e agora o “populista” governo italiano pode fazer isso também, protegendo assim os efeitos reais e a amplitude de suas políticas.

O ponto mais importante a compreender, de facto, é que qualquer que seja o partido que está no poder, nenhum verdadeiro debate democrático se pode verificar enquanto não pararem as negociações à porta fechada sobre as políticas e as instituições dos países membros. Uma maneira demasiado fácil, as forças de todas as cores política podem embrulhar as suas preferências com a retórica apropriada e alimentá-las para o público, evitando assim um debate.

Uma condição para impedir que assim seja, é então que as teorias erradas – como aquelas que afirmam que as taxas de desemprego acima de 15% são “naturais”, que as despesas do défice público são em si mesmo inflacionistas e têm efeitos negativos sobre o crescimento, que existe um efeito de arrasto tipo trickle-down, ou que os nossos recursos são escassos e escassa deve ser a nossa solidariedade – devem desaparecer de uma vez por todas. Isso equivale a lutar contra a imposição de uma “linha oficial de partido” na teoria e prática económica, que transforma a economia numa serva inútil fornecendo a autovalidação para as elites e contribuindo para a restrição do debate e abertura que são vitais para uma sociedade funcional e justa.

Entre a centralização e a autonomia nacional

Como e porque é que chegámos aqui? A resposta reside na evolução peculiar da arquitetura europeia a partir do Tratado de Maastricht de 1992 em diante.

De facto, apesar da sua representação como um quadro impossível de ser reformado, o sistema europeu de governação económica evoluiu substancialmente nas últimas duas décadas. A partir de 2018, após um intenso período de inovação legislativa, tornou-se um sistema complexo de regras, prazos e compromissos supervisionados pela Comissão Europeia. O elemento-chave desta arquitetura é um vasto conjunto de regras técnicas e aparentemente “objetivas”, que se tornaram o centro da negociação e a expressão “revelada” de um compromisso supranacional baseado nas preferências nacionais subjacentes.

A evolução é o resultado da interação de duas forças em movimento, como Kindleberger argumentou, [1] entre centralização e pluralismo: primeiro, o desejo dos arquitetos de Maastricht para reduzir o papel autónomo dos governos democráticos nacionais (e os Estado de bem-estar keynesiano); e segundo, o poder das forças tradicionais nacionais e burocráticas, insensível a qualquer coisa semelhante à verdadeira união política. A expressão mais óbvia do primeiro movimento foi a fundação do Banco Central Europeu (BCE) como instituição independente, impedida de financiar diretamente os Estados-Membros [2]. Isso eliminou o espaço para o Estado poder promulgar políticas públicas apropriadas, independentemente dos caprichos dos mercados financeiros. O segundo movimento é reconhecível no carácter intergovernamental original das instituições políticas da UE, como o Conselho Europeu.

Por vezes, os objetivos destas duas forças convergiram; noutras vezes, estes objetivos opuseram-se um ao outro. No processo, e dentro de uma visão geral sobre o desejo de enfraquecer o Estado keynesiano, as preocupações sobre a estabilidade global do sistema foram negligenciadas. Eventualmente, se o acordo se revelar insuficiente, uma crise obrigaria os países membros a prosseguirem as suas ações, como parece ter previsto o pai fundador da UE, Jean Monnet. No entanto, por debaixo desta superfície, há uma contradição fundamental nesta arquitetura institucional: entre um desejo de estarem mais seguros juntos, na economia globalizada, por um lado; e um desejo de ser complacente (e, portanto, pensa-se, como credível) em face dos caprichos dos mercados internacionais, por outro.

Mas seja qual for a intenção inicial, a combinação de desregulamentação financeira, austeridade orçamental e uma dimensão única para toda a política monetária acabou por incentivar a dinâmica económica divergente entre os países da zona euro. A recente crise intensificou ainda mais essa assimetria, que tem sido descrita como uma relação entre centro e periferia entre os membros do Norte e os do Sul da zona euro, dando maior poder de negociação para os credores do Norte sobre os devedores do Sul. Isto reflete-se na evolução das instituições comuns e na forma como estas são interpretadas e moldadas.

As origens e a evolução do quadro de supervisão orçamental

Na véspera da criação da União Europeia, o contexto para a promulgação dos novos quadros monetários e orçamentais revelou-se crucial. De facto, a rutura das ligações entre os governos e o banco central nacional foi um forte incentivo para manter as políticas orçamentais austeras, mas não constituiu uma garantia real da sustentabilidade potencial das dívidas públicas e da convergência das políticas públicas. Na tentativa de resolver o problema, os países membros acordaram num pacto de estabilidade e crescimento (PEC), introduzido em 1997. Como é sabido, o acordo definiu limites máximos para os desequilíbrios orçamentais públicos e o endividamento público total do país (3% e 60% do PIB, respetivamente).

A ideia não dita, implícita, era que os mercados de capitais privados desregulamentados, juntamente com as regras orçamentais, por si sós induziriam a convergência económica entre os países. O BCE e o sistema de pagamento TARGET2 foram concebidos para permitir a perfeita mobilidade de capitais e o acesso simétrico aos mercados financeiros, a hipótese de que os movimentos de preços garantiriam uma perfeita substituição de ativos. O Pacto de Estabilidade e Crescimento concederia eficácia às estratégias de segmentação de inflação praticadas pelo banco central. Desde o início do processo, muitos economistas advertiram sobre o enviesamento a favor da deflação do projeto e depararam-se com a completa ausência de preocupações com os níveis de emprego [3]. Uma longa série de esforços de economistas keynesianos e de alguns formuladores de políticas para fornecerem à União algum tipo de esquema de seguro foi condenado pelos receios nacionalistas, juntamente com as ansiedades sobre a subida da inflação e da dívida pública. O que realmente importava para as elites nacionais na altura era obter uma garantia de estabilidade de preços que poderia ajudar a UE a tornar-se um centro financeiro internacional (principalmente uma aspiração francesa) e poderia ajudar a alcançar os excedentes da conta corrente. A este respeito, a Alemanha beneficiou mais com uma taxa de câmbio real relativamente subavaliada (externamente) que resultou da unificação monetária.

A primeira racha neste sistema de governança macroeconómica baseada em regras ocorreu em 2005, quando a Alemanha e a França violaram as limitações orçamentárias do PEC. Por mais difícil que seja acreditar hoje, naquele tempo a Alemanha e a França defenderam um abrandamento se não mesmo a revogação do pacto.

A primeira reforma do PEC foi um momento crucial para a evolução institucional e económica da União Económica e Monetária (UEM) e acabou por ser uma derrota parcial para o Chanceler alemão Gerhard Schröder. Um momento crucial, de facto, a reforma falhou na eliminação da regra orçamental, e, em vez disso, o que aconteceu foi que o objetivo do défice público nominal foi redefinido para passar a ser uma estimativa do défice orçamental estrutural. A solução tornou-se a de adicionar válvulas de escape e flexibilidade ao Pacto, mantendo o efeito disciplinar de uma regra externa, como foi famosamente expressa por Hans Eichel, Ministro das finanças da Alemanha na época.

A estimativa orçamental de tipo estrutural, de facto, relaciona os défices orçamentais reais com o crescimento potencial da economia, um conceito controverso e sobrecarregado de teoria, o que, para a Comissão, implica a consideração dos efeitos de várias políticas e preocupações institucionais, e não apenas aquelas que são puramente económicas. A sua capacidade de lançar uma capa de uma falsa precisão estatística sobre uma mescla de pressões cruzadas e de interesses torna-a um instrumento quase perfeito para gerir conflitos e negociações à porta fechada. Ela ajuda a neutralizar o papel dos eleitorados nacionais, apresentando decisões políticas cruciais como sendo o resultado de razões objetivas e científicas.

A história e os detalhes desta primeira reforma mostram até que ponto as medidas de austeridade dos anos seguintes refletiram as convicções partilhadas pelas elites, em vez de representar simplesmente uma imposição de um país sobre os outros (por exemplo: a Alemanha) ou os ditames dos tecnocratas. Portugal, com o primeiro-ministro Barroso e a Espanha, com o primeiro-ministro Aznar, bem como a Bélgica e os Países Baixos, estavam em condições de recusar as reformas de austeridade sugeridas pela Comissão – simplesmente aproveitando a oportunidade aberta pela Alemanha e outros grandes países -mas optaram por não o fazer.

Nessa altura, a ideia da União como uma assembleia de nações soberanas parecia ganhar força, contra o poder central da Comissão. Mas as decisões de política económica dos países periféricos que se abriram à entrada massiva de fluxos de capital, cortes da despesa pública, e reforma dos mercados laborais, juntamente com a nova dependência de diretrizes estimadas, equivaleram a um primeiro passo que transformou a governança económica europeia num sistema que tem um controle mais profundo que nunca sobre as políticas económicas nacionais.

O alarmismo económico e as reformas finais

Quando a crise bancária e outras pressões económicas forçaram a que a questão da continuação de mais reformas estivesse na ordem do dia, as divergências entre as economias do núcleo e da periferia dentro da zona euro tinham-se intensificado enormemente, alterando o equilíbrio político e, de facto, anulando as anteriores aspirações intergovernamentais.

Na ausência de um mecanismo de partilha de riscos, a súbita reversão dos movimentos massivos de fluxos financeiros da Alemanha e da França para Espanha, Irlanda e outros países resultou, inevitavelmente, num aumento substancial do poder relativo dos países credores da Europa do Norte em face dos países devedores. As taxas de juros sobre as obrigações de vários países periféricos da zona euro dispararam quando estes países foram forçados a socorrer bancos privados e instituições financeiras e no rescaldo imediato da crise, os países credores aplicaram normas relativamente flexíveis sobre a supervisão e equilíbrio orçamental para os seus próprios casos, ainda que tenham imposto condições muito mais duras sobre a sua solidariedade para com os outros.

Um evento foi crucial, e relembra o que, na década de 1970, Federico Caffe [4] apelidou de alarmismo económico: a prática de deturpar a situação económica, exagerando os aspetos negativos e criando a impressão de condições de emergência sem precedentes, como forma de apresentar uma determinada combinação de políticas, frequentemente disruptivas do anterior equilíbrio sócio-económico, como sendo a única solução possível.

No seu famoso passeio em Deauville, em 18 de outubro de 2010, a Chanceler alemã Angela Merkel e o Presidente francês Nicolas Sarkozy levaram o princípio do alarmismo económico para um nível ainda mais elevado. Ignorando os procedimentos habituais de deliberação da UE, eles concordaram em afirmar o princípio do não resgate externo, agora conhecido como o princípio do envolvimento do sector privado (PIS), que é o resgate interno dos titulares de obrigações dos governos da UEM. Imediatamente, os rendimentos das obrigações irlandesas e portuguesas dispararam, seguidos depois pelos espanhóis e italianos.

Assim, “Merkozy” realmente gerou uma emergência que preparou o terreno para uma nova reforma, desta vez para aumentar o poder da Comissão contra os países considerados faltosos no cumprimento das regras orçamentais. A reforma de 2011, o chamado acordo Six Pack, criou um quadro muito mais rigoroso do que o Pacto de 2005. Este é, efetivamente, o caso, mas apenas para os países da zona euro mais fracos, que estão agora sujeitos a obrigações e controlos específicos (adicionais).

A reforma intensificou o controlo explícito das instituições europeias supranacionais sobre uma vasta gama de práticas macroeconómicas e institucionais dos países membros, mantendo a implementação flexível e assimétrica das regras. De facto, as exceções incluídas no Pacto de 2005 continuam a conter até mesmo alguns adicionais, incluindo o “caso de acontecimentos não habituais fora do controlo do país com um grande impacto na situação financeira da Administração Pública” e o “caso de recessão económica severa na zona euro ou no conjunto da união. “

Neste novo contexto, a Comissão determinou de forma espetacular a agenda política na maioria dos países da UEM, forçando a partir de Bruxelas para a aplicação de reformas no mercado de trabalho e nos sistemas de pensões de reforma, bem como alterações sistemáticas nas estruturas fiscais nacionais destinadas a aumentar o peso da tributação regressiva do consumo. A criação de uma emergência financeira é certamente um jogo muito perigoso, um claro exemplo de se estar a brincar com fogo.

O quadro instável, os elevados riscos, a fragilidade financeira e o vazio político deram um enorme poder ao Banco Central Europeu, que muitas vezes actua como um novo árbitro da política orçamental, graças à condicionalidade (arbitrária) do seu apoio aos países membros.

O jogo perigoso e o espelho italiano

Deste modo, o jogo perigoso continua. A ausência de vontade política para criar mecanismos automáticos de proteção financeira surgiu novamente no contexto da criação de uma união bancária, um processo iniciado em 2012 (com resultados que beneficiam os bancos alemães desproporcionadamente) e que ainda continua em curso. Em contraste com o que consta do plano da Comissão Europeia de 12 de setembro de 2012, a decisão do Conselho Europeu de 13 a 14 de dezembro de 2012 de criar um sistema comum de supervisão chefiada pelo BCE nunca foi acompanhada pela possibilidade de o Mecanismo Europeu de Estabilidade poder recapitalizar diretamente os bancos. O Conselho de 2012 também apelou uma configuração regulamentar harmonizada e a adoção da Diretiva para a recuperação e resolução de bancos, bem como um sistema harmonizado de garantia de depósitos até junho de 2013 (FMI 2013). Em vez disso, uma Comunicação da Comissão sobre a aplicação de regras de ajudas estatais para apoiar medidas a favor dos bancos no contexto da crise financeira (Comissão Europeia 2013) foi publicada em julho de 2013, afirmando- novamente – o princípio do resgate interno: “o banco e os seus titulares de capital devem contribuir para a reestruturação, tanto quanto possível, com os seus próprios recursos. O apoio estatal deve ser concedido em termos que representem uma adequada partilha de encargos por parte dos que investiram no banco. “

Se os países membros não chegarem brevemente a um acordo sobre um seguro de depósitos comum, isto pode vir a ser o centro da próxima crise. Estando prevista a discussão do progresso da união bancária para a reunião do Conselho deste mês, este espectro assombra a resolução do atual impasse político italiano. A razão é simples e está tudo expresso nas palavras do Presidente italiano da República Sergio Mattarella quando anunciou que não poderia aceitar a formação de um governo que incluía um ministro anti-euro para o Tesouro. O Presidente disse: “Tenho de cuidar das poupanças do povo italiano.” A frase é bastante reveladora da camisa-de-forças que é o euro. Por um lado, os países centrais que dominam as negociações estão em posição de forçar uma crise na Itália (com, naturalmente, resultados incertos para todos), ameaçando assim verdadeiramente as poupanças pessoais dos italianos e muito possivelmente de outros também. Mas também é evidente que, desde o Tratado de Maastricht, a moeda comum e a União Monetária têm significado para os italianos, acima de tudo, uma redução do seu rendimento real disponível e da sua capacidade de acumular poupanças.

Um aviso é, entretanto, necessário: como mencionado acima, durante muito tempo a austeridade era uma escolha e as elites italianas (e aqueles que votaram nelas) não podem repudiar muita da responsabilidade pela estagnação prolongada. Isto significa também que sair da zona do euro não seria garantia de uma mudança nas prioridades políticas e económicas. Com efeito, o debate caótico que está agora a decorrer entre os defensores e os opositores ao euro mostra o embaraçoso vazio em relação ao que deveriam ser essas prioridades.

Um elemento importante a ter em conta é que a austeridade não é um conceito simétrico: não se aplica igualmente a todos os sectores e grupos da economia. Um exemplo disso mesmo são as sugestões da Comissão para o aumento das infames taxas regressivas sobre o IVA e para a aplicação de uma dura reforma do mercado de trabalho que reduziu drasticamente os salários. Tais medidas não estimulam o crescimento, podendo-se mesmo dizer que poderiam agravar ainda mais a posição das finanças públicas de uma economia. No entanto, estas medidas favorecem os ricos contra os pobres.

Deste ponto de vista, as propostas de política orçamental do novo governo italiano, tal como a introdução de um “imposto fixo”, parecem aumentar igualmente a desigualdade na distribuição da carga fiscal. Se a decisão de reduzir os impostos for acompanhada de uma nova redução dos serviços públicos e das provisões, o efeito global do orçamento poderá ser restritivo. O risco é que as medidas, tal como anunciados vagamente nesta fase, se reduzam a uma mera remodelação dos componentes orçamentais em favor de vários círculos eleitorais, com um efeito basicamente nulo no saldo orçamental.

Conclusão

Embora a crise de 2010 tenha posto em evidência a necessidade do capitalismo europeu em ter um poder central mais forte, capaz de reagir rapidamente às oscilações económicas e financeiras com intervenções discricionárias temporárias, a atual instabilidade que lhe é inerente pode ou servir de combustível ou interromper o processo em direção a uma solução unificada. A França e Alemanha podem decidir utilizar a discussão sobre a união bancária para forçar um resultado que intensifique o seu controle sobre a política italiana, mas o jogo perigoso pode ter consequências (talvez não intencionais) políticas e económicas que poderão levar ao desastre. Além disso, qualquer progresso em direção a uma centralização estável implica uma redução do envolvimento dos eleitorados em decisões económicas cruciais, canalizando-as através de procedimentos tecnocratas e negociações à porta fechada.

As Constituições e parlamentos nacionais, que foram cruciais para as democracias europeias do pós-guerra, estão a tornar-se cada vez mais marginalizados e sem força. Estas democracias representaram a tentativa, após as experiências totalitárias da primeira metade do século XX, de construir garantias institucionais para a manutenção de uma representação democrática equilibrada e para a resolução de interesses políticos e económicos. Esta tentativa foi abandonada. O centro da negociação política, agora, reside cada vez mais em comités tecnocráticos, onde as tensões entre diversos grupos de elite nacionais são mediadas pela recombinação de componentes orçamentais e reformas institucionais.

Os Estados-nação são hoje a única instituição na Europa capaz de transmitir qualquer preferência democrática, tornando-os o único espaço possível para a ação política do eleitorado. Mas, embora o total recuo para o interior das fronteiras nacionais possa parecer uma solução apelativa, não seria garantia de uma mudança de direção, sobretudo porque essas estruturas de estado-nação estão agora desgastadas por décadas de políticas neoliberais. Agora, mais do que nunca, temos de considerar a diferença entre o acesso formal e substancial às decisões.

Definir instituições apropriadas para regularem e mediarem entre as forças económicas e sociais é um desafio global e não apenas europeu, mas a sua realização pode parecer demasiado fora do nosso alcance. Uma forma de recuperar o espaço para a deliberação democrática construtiva e a experimentação de políticas é opor-se ao aparato tecnocrata e científico que apoia e sustenta o impasse atual. A retórica “tecnocrata” dos economistas e dos banqueiros centrais convenceu a maioria das pessoas de que não existe uma alternativa viável à lógica do mercado (financeiro), à austeridade orçamental, aos baixos salários, aos mercados de trabalho flexíveis e aos bancos centrais independentes. Desta forma, a economia dominante, dos poderes estabelecidos, tem restringido (e continua a restringir) escolhas políticas, retirando aos eleitorados a sua autonomia no julgamento político e moral. Este é um jogo perigoso, uma vez que a única maneira que os eleitorados marginalizados têm para expressar a sua raiva, ansiedade e impotência é escolhendo as forças que se autodefinem como forças “antiestablishment”. Isso não aconteceu apenas na Itália, mas em outros lugares da zona euro e na Grã-Bretanha também. Os EUA estão a sofrer as consequências da sua versão própria da mesma história. Ninguém pode dizer onde é que isso nos pode levar.

Os economistas são muito responsáveis por esta desordem: eles têm a responsabilidade de ajudar a melhorar a nossa situação atual. A única maneira de o fazerem é criando espaço para deliberação política relevante sobre políticas alternativas à austeridade orçamental, à desigualdade elevada e aos empregos flexíveis e mal pagos. Eles têm que abandonar a “linha partidária” oficial da teoria e prática económicas – um Politburo que transforma a economia numa serva inútil que proporciona a autovalidação para as elites e contribui para bloquear o debate e a abertura democrática que são vitais a uma sociedade funcional e justa.

Este artigo apoia-se extensamente no meu trabalho “Political Economy of the Stability and Growth Pact,” European Journal of Economics and Economic Policies: Intervention, Vol. 14 No. 3, 2017, pp. 333–350. doi: 10.4337/ejeep.2017.0029. Estou grata a Servaas Storm, Roberto Ciccone, Thomas Ferguson, Sergio Levrero, Robert Johnson, e Annamaria Simonazzi pela enorme ajuda na clarificação e melhoria do presente texto.

 

Notas

[1] Kindleberger, C.P. (1996): Centralization versus Pluralism: A Historical Examination of Political-Economic Struggles and Swings within Some Leading Nations, Copenhagen: Copenhagen Business School Press. Devo esta referência a Perry Mehrling.

[2] A decisão de tornar os bancos centais nacionais independentes do Tesouro tinha já sido tomada pela Itália em 1981 e pela França em 1986..

[3] Demasiados para que dê uma lista exaustiva, mas veja por exemplo Godley (1992), Goodhart (1998), Parguez (1999), e Simonazzi/Vianello (1999).

[4] Caffè, Federico (1976): Un’economia in ritardo: contributi alla critica della recente politica economica italiana, Turin: Bollati Boringhieri

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Com a apresentação deste anexo 7 concluímos a edição da série “A minha neta e a crise no Serviço Nacional de Saúde. Ainda algumas reflexões mais sobre a democracia, em Portugal e na União Europeia à teoria e à política económica neoliberal” de Júlio Marques Mota.

Deixamos abaixo a enumeração dos textos editados e respetiva ligação.

A minha neta e a crise no Serviço Nacional de Saúde. Ainda algumas reflexões sobre a a democracia, em Portugal e na União Europeia. Carta aberta ao primeiro-ministro António Costa, publicado em 30 de novembro, 1 e 2 de dezembro de 2018

– Anexo 1 Um olhar por dentro do sistema de saúde em Portugal. O olhar de um especialista em questões de saúde, Júlio Pereira dos Reis, publicado em 3 de dezembro de 2018

Anexo 2 A União Europeia e a democracia em perigo, publicado em 4 de dezembro de 2018

Anexo 3 A Itália, como exemplo da irracionalidade económica da União Europeia. Textos de Eric Sylvers e de Orsola Costantini, publicado em 5 de dezembro de 2018

Anexo 4 A política económica e custo de nada fazer, publicado em 6, 7, 8 e 9 de dezembro de 2018

Anexo 5 A solidariedade na União Europeia e os efeitos a prazo da crise – o caso da Grécia, um país em agonia, publicado em 10 de dezembro de 2018

Anexo 6 A Face escondida da pressão de Bruxelas – Casos da CP e do Hospital Pulido Valente, publicado em 11, 12 e 13 de dezembro de 2018

Anexo 7 A Arquitetura da União Europeia, uma arquitetura de costas voltadas para a Democracia: “A Itália representa um espelho de um Europa esfarrapada”, um texto de Orsola Costantini, publicado em 14 de dezembro de 2018.

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